José André da Silva, o Pé de Ferro

Verônica Tamaoki e Anselmo Serrat entrevistaram Pé de Ferro em Camaçari (BA), em 1985, dentro do projeto o Circo no Nordeste, promovido pelo antigo Instituto Nacional das Artes (Inacen). Transcrição e edição – Verônica Tamaoki

José André da Silva, o Pé de Ferro, é pernambucano de Vitória de Santo Antão, e nasceu em 1936, completando neste ano 70 anos. Parabéns, Pé de Ferro!

Rapazote, já vivendo no Recife, trabalhava como ajudante de pedreiro e nos finais de semana, costumava alugar uma bicicleta na garagem do Noé. Corria grande distância e em alta velocidade, mesmo assim devolvia a bicicleta intacta. Isso chamou a atenção de Noé, que passou a incentivá-lo a participar de corridas e, de quebra, deu-lhe o nome que o acompanharia para o resto da vida: Pé de Ferro.

Com a bicicleta do Noé, ele ganhou sua primeira corrida, e com o dinheiro do prêmio adquiriu sua primeira bicicleta. Meia desmantelada, é verdade, e nem cambio de marcha tinha, mas era dele. Com aparelho próprio, Pé de Ferro conquistou o campeonato da segunda categoria. E acabou chamando a atenção do Esporte Clube do Recife, que lhe deu uma bicicleta alemã – não era dada e sim emprestada, mas ficava o tempo todo com ele. Aí o homem disparou, tornando-se campeão pernambucano na primeira categoria.

Só tinha um porém nessa história, o ciclismo ainda era um esporte amador. A Federação e os clubes cuidavam da bicicleta, forneciam uniforme, medicamentos, até alimentação em bons restaurantes, mas dinheiro que é bom, André ganhava como marreteiro.

Nisso, os Irmãos Temperani, que em matéria de ciclismo artístico eram autoridade máxima no país, chegaram no Recife. André não viu a apresentação dos afamados artistas, mas seu amigo Ivanildo, um tecelão que também adorava bicicletas, viu. E ficou tão entusiasmado que, chegando em casa, entortou a sua bicicleta, mais ou menos como as dos Temperani, e começou a ensaiar as posições que eles faziam. O entusiasmo de Ivanildo contagiou Pé de Ferro que também entortou sua bicicleta e se juntou ao colega. Em uns dois, três meses, eles já estavam fazendo algumas posições.

Um dia André se viu sem tostão no bolso, e com as panelas de casa vazias. Foi então que a necessidade fez o saltimbanco. Vestiu sua melhor roupa, pegou sua bicicleta e foi para o caís do porto do Recife. Era um sábado.

No caís, onde os estivadores se reuniam, ele começou a fazer posições na bicicleta. Juntou gente. Teve uns que aplaudiram, outros partiram, outros chegaram, e ele lá, se posicionando na bicicleta mas sem conseguir se posicionar com a platéia. Já estava bisando seu repertório… Foi então, que um estivador conhecido seu, chegou junto dele e falou:

– Por que você não cobra um dinheirinho do povo?

– É essa minha intenção! Mas tenho vergonha de pedir.

Aí o estivador tirou o chapéu da cabeça e se voltou para a platéia:

– Todo mundo aqui vai colaborar com o rapaz!

Passou o chapéu e entregou-lhe o dinheiro. Pé de Ferro ajeitou nota por nota antes de guardá-las no bolso. Eram 170 mil réis, valia a semana de trabalho de um operário. O estivador anjo da guarda, disse-lhe então:

– Vá agora, para a Duque de Caxias! Lá tem muita gente.
Na Duque de Caxias, depois de uma hora de apresentação, Pé de Ferro, que por dentro lamentava não ter trazido o estivador, tomou coragem e rodou o chapéu. Saiu de lá direto para praça do Diário de Pernambuco. Dessa vez foi mais rápido, e o resultado foi melhor ainda. Quando deu oito e meia, estourando de felicidade, ele foi pra casa.

– Com os bolsos da calça socados de dinheiro. E olha que naquela época, os bolsos eram bem mais fundos que os de hoje.
Quando chegou em casa, chamou a mãe e começou a jogar o dinheiro, que ia tirando dos bolsos, em cima da cama. Ia tirando e jogando.

– Meu filho, você roubou este dinheiro?

– Não, mãe, foi o povo que me deu!

Durante 3 anos, Pé de Ferro se apresentou no centro do Recife todos os sábados e domingos, salvo os que a chuva não permitiu. Passava a semana ensaiando e construindo aparelhos. Primeiro fez o monociclo baixo, depois o alto, a rodinha sem selim, e por fim, a bicicleta que desmonta – que lhe deu muito trabalho, já que ele nunca tinha visto uma na vida.

A platéia, semana a semana, pôde acompanhar o processo de formação e evolução do artista. Processo que ele mesmo fazia questão de evidenciar:

– Semana que vem tem novidade! Vou tocar bandolim no monociclo alto.

Quando dava 3 horas da tarde, o lugar onde ele se apresentava já estava cheio, e se acaso se atrasasse, era repreendido:

– Chegou atrasado, heim rapaz!

bicicletape1O caís do porto foi a escola de Pé de Ferro, e quando nela se formou, já sabendo que saltimbanco não esquenta lugar, foi em busca de outras praças. Com a engenhosidade que lhe é peculiar, construiu uma carrocinha reboque, onde colocava a bicicleta que desmonta, os monociclos, a roda, e uma valisinha para guardar o dinheiro, engatou nessa carroça a bicicleta de truques e, pedalando, foi se apresentar em cidades próximas do Recife. Depois, de trem foi até Fortaleza e desceu até Maceió. Lá, encontrou o circo do Garrido e do Carioca, e nele se engajou e permaneceu por dois anos. Saiu do circo para ser garoto propaganda da Monark. Viajou o Brasil todo, durante oito anos, fazendo apresentações com a Monark. Depois, montou seu próprio circo, o Circo Pé de Ferro, que no começo era um pano de roda, mas que com o tempo ganhou cobertura, e um assoalho de madeira apropriado para ciclismo. Viajou a Bahia durante 8 anos, até que seu circo quebrou. Foi quando se estabeleceu em Camaçari, e mais uma vez começou tudo de novo. Foi vendedor ambulante, pedreiro, biscateiro, até descobrir que, a partir de garrafas de vidro, ele podia confeccionar, conforme corte e montagem, diferentes utensílios domésticos – vasos, taças, jarras, copos. Montou sua fábrica de fundo de quintal e era com isso que estava se virando quando, eu e Anselmo Serrat, que na época realizávamos uma série de entrevistas com circenses da região de Salvador, o conhecemos.

Tempos depois, ele, que em nosso primeiro encontro afirmara que não tinha intenção de voltar a por os pés, que o consagraram, num picadeiro, aceitou prontamente o convite que lhe fizemos para se apresentar no Circo Troca de Segredos, num show de música que reunia os principais nomes de então do carnaval baiano. Tinha Luiz Caldas, Laurinha, Sarah Jane, Lui Muritiba, mas naquela noite, Pé de Ferro foi a estrela que mais brilhou no firmamento daquele circo. No final do seu número, o circo todo estava de pé! Pé de Ferro estava de volta ao circo.

Ao Pé de Ferro, Pingüim, Tarzan, Bráulio, Izabel, Ivan, Zé Maria, Linda Paz e todos artistas da aristocracia popular do circo nordestino que tive o privilégio de conhecer e conviver, toda minha admiração e meu eterno agradecimento.

Verônica Tamaoki

25.03.2006

 

Abaixo, transcrição na íntegra da entrevista realizada:


Nasci em Vitória de Santo Antão (PE), no ano de 1936. Meu nome é José André da Silva, mas me chamam Pé de Ferro. Quem me deu este apelido, que acabou virando nome artístico, foi o Noé, dono de uma garagem de bicicletas lá no Recife. Eu sempre gostei muito de bicicletas, mas como não tinha dinheiro pra comprar uma, alugava, nos finais de semana, as do Noé. Eu corria muito, mesmo assim não estragava as bicicletas. Por isso, um dia, ele me disse: Zé, você é o maior ciclista daqui, é o Zé Pé de Ferro!

O Noé me incentivou muito a participar de uma corrida que ia ter lá em Recife. Eram 10 corredores, cada um entrava com 50 mil réis, e o vencedor, levava os 500. Eu consegui juntar o dinheiro, me inscrevi, corri e ganhei. Foi então que o apelido pegou. Virei Pé de Ferro.

Com o dinheiro do prêmio, comprei a minha primeira bicicleta, meio desmantelada, nem cambio de marcha tinha, mas era minha. E com esta bicicleta eu ganhei minha primeira corrida na 2o categoria. Aí o Esporte Clube lá do Recife me chamou. Me deram uma bicicleta alemã pra eu correr, não era minha mas ficava na minha mão, e com ela, passei para a 1o categoria.

Fui campeão Pernambucano por 3 anos consecutivos, invicto. Corri o campeonato brasileiro de ciclismo em São Paulo, a famosa 9 de julho. Corri a 1o volta do Estado do Rio de Janeiro – 1410 km, a corrida de Vitória e outras. Sempre representando a Federação Pernambucana de Ciclismo. Mas eu não ganhava dinheiro com o ciclismo; só saía medalha, taça, flâmula. Os clubes davam uma sapatilha, ajeitavam a bicicleta, forneciam medicamentos, inclusive alimentação – eu almoçava no Palácio do Alumínio, onde só tinha comida boa e gente fina. Mas o dinheiro que era bom, eu tinha que tirar como marreteiro. Aí eu cansei, caí fora, e fui trabalhar de pedreiro.

Foi quando chegaram os Irmãos Temperani, lá no 13 de maio que era onde costumava armar circo no Recife. Eu não fui assistir, mas o Ivanildo, um colega meu, um tecelão, que também gostava muito de bicicletas, foi. E ficou doido com o número deles: 4 homens e 4 mulheres, fazendo aquele festival de bicicletas no picadeiro.

Quando chegou em casa, ele entortou sua bicicleta, deixou mais ou menos do jeito da deles, e começou a ensaiar. A gente se encontrava todos os domingos, e eu também me empolguei com aquilo. Entortei minha bicicleta e comecei a ensaiar, a fazer o que ele dizia que os Temperani faziam. Em uns dois meses, eu já estava fazendo, um pouco desequilibrado, mas já fazendo várias posições.

Um dia, minha guia quebrou e eu fiquei liso, sem um tostão. Precisava fazer a feira para minha mãe. Fui para o Recife, no caís do porto, num lugar chamado Rua da Guia, onde os estivadores se reuniam, e comecei a fazer as posições na bicicleta. Juntou gente. Um estivador, amigo meu, disse: por que você não cobra um dinheirinho do povo. Eu disse que era essa minha intenção, mas que estava com vergonha. Aí ele pegou o chapéu e disse: todo mundo aqui vai colaborar com o rapaz. Ele deu uma corrida e me passou o chapéu. Ajeitei e contei o dinheiro, tinha 170 mil réis, valia por uma semana de um trabalhador.

Meu amigo me disse: vá agora, para a Duque de Caxias, que lá tem um movimento bom. Eu fui. Fiquei mais de uma hora fazendo as posições, até tomar coragem de pedir dinheiro pro povo.

Já estava escurecendo quando eu segui para o Diário de Pernambuco. Lá, fui mais ligeiro e o resultado foi melhor ainda. Quando deu oito e meia, fui embora. Os dois bolsos da minha calça estavam socados de dinheiro. E olha que naquela época, os bolsos eram bem mais fundos que os de hoje.Quando cheguei em casa, chamei minha mãe e comecei a tirar dinheiro do bolso e jogar em cima da cama. Ia tirando e jogando. Minha mãe ficou apavorada: você roubou esse dinheiro, Zé? Não, mãe, foi o povo que me deu!

No sábado seguinte, eu me mandei pro caís. No final do trabalho, meu amigo, o estivador disse: volte amanhã, que no domingo muita gente vem passear no caís para ver os navios. Eu voltei. E entre sábado e domingo, ganhei um dinheiro que nunca tinha visto na minha vida. Aí eu tomei gosto pela coisa.

Passava a semana inteira ensaiando e construindo novos aparelhos. Comecei com a bicicleta que desmonta. Mas como eu nunca tinha visto, tive que fazer umas 4, 5 vezes, pra conseguir acertar. Fiz de um jeito não deu, fiz de outro também não deu. Fiz com a borboleta, mas na hora de desencaixar não dava. Eu lutei, lutei, lutei, até que arrumei um jeito, e a bicicleta acabou ficando perfeita. Depois, fiz a rodinha sem selim e o monociclo alto. Durante as apresentações, eu anunciava: semana que vem tem novidades.

Fiquei dois anos e tanto na praça do Recife. Davam 3 horas da tarde, e o lugar onde eu me apresentava já estava cheio de gente. Se acaso eu me atrasasse, o público reclamava: chegou tarde hoje, heim rapaz?

Depois, quando a praça caiu um pouco, eu fiz uma carrocinha, onde eu colocava a bicicleta que desmonta, o monociclo, a roda e a valisinha de guardar dinheiro, engatei nela a bicicleta de truques e ó, caí no mundo. Fui para Garanhuns, Caruaru, João Pessoa, Natal. De trem, subi até Fortaleza, e desci até Maceió.

Aí eu fui trabalhar no circo do Garrido e do Carioca, acho que se chamava Hong Kong. Fiquei quase dois anos com eles, até ser contratado pela Monark. Viajei todo o Brasil durante oito anos, fazendo apresentações para a Monark. O dinheiro não era muito, mas era seguro.

Quando saí da Monark, fiquei um tempo de marreteiro, até montar o meu próprio circo, o Circo Pé de Ferro. No começo era um pano de roda, mas com o tempo, ganhou cobertura. Fiquei por 8 anos no estado da Bahia, até quebrar, e fixar residência aqui em Camaçari. Atualmente, trabalho com vidro: transformo garrafas em copos, vasos, jarras, que vendo nas feiras livres. O que mais vocês querem saber?

 

 

 


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