José Américo, o Joe

Trecho do livro Circo Nerino de Roger Avanzi e Verônica Tamaoki . Selo Pindorama Circus e Editora Codex. 2004 – São Paulo (SP)

No Circo Nerino, a comida era muito boa. Tinha um cozinheiro preto, o Basquete, que fazia comida francesa. O nosso café da manhã era espetacular: pão, queijo, salame. Tudo com muita fartura. Mas, se alguém se sentasse no meu luga, eu nem me aproximava da mesa, ficava de longe. Dona Armandine me chamava:

– José Américo, venha tomar café, menino!

Aí alguém dizia para a pessoa que estava no meu lugar:

– Sai daí que esse lugar é do Joe.

Só depois que o sujeito saía é que eu me sentava.

Eu nasci em 1933, no Recife. Meu pai era superintende da Atlantic. Um homem muito
estudioso, tinha uma cabeça… Um crânio, o meu pai. E eu sempre fui muito sistemático, de uma diretriz organizada, já nasci assim. Nas férias, eu costumava ir ensaiar acrobacia nos circos. E, assim, fui aprendendo a botar as pernas para cima, a dar flip-flap. O primeiro circo grande que eu vi na minha vida foi o Nerino. E numa noite, após o espetáculo, meu pai me levou até o Gaetan:

– Te apresento um menino que salta, pára de mão.

Na noite seguinte, Gaetan foi jantar em casa. Ele me disse:

– Quer ir passar as férias no circo?

Eu fingi que não sabia. Aí meu pai falou:

– Você quer ou não quer?

Eu quis! E meu pai deixou. Aí, então, eu encontreia escola do circo. Quando meu pai foi me buscar, eu já entrava em alguns números. Ele disse:

– Você quer continuar no circo?

Eu quis! E meu pai deixou.

Você sabe que, se uma criança de 6 anos for viver num circo, em quinze dias ela vai estar completamente fascinada por aquele mundo? O circo tem uma magia que prende, é sensacional. Eu sempre digo que circo não é vocação, é só deixar a pessoair. Se meu pai não tivesse deixado, eu não tinha ido. Agora, o que aconteceu comigo, de eu ficar famoso e ter feito números espetaculares, modéstia à parte, foi ser organizado, ambicioso e querer chegar ao cume do negócio. E também por tercomeçado com o Gaetan, um homem invencível, uma máquina, um trator.

Eu era anunciado assim: “O único do mundoque sustenta o peso total do seu corpo sobre o dedo indicador.” Fazia esse número em cima de uma bola, primeiro de madeira, depois de acrílico, transparente. Fiz isso tudo com muito estudo, muita dedicação. Tanta que quase enlouqueci de tanto ensaiar. De verdade. Eu e oFrancisco malabarista, o Chico. Nós éramos colegas de quarto e, ao chegar ao hotel, encostávamos as camas contra a parede e começávamos a ensaiar. O Chico amarrava a ponta de um lençol na cintura e pregava a outra na parede pra não ter de abaixar quando as claves caíam. E eu fazia parada de mão. De cabeça para baixo, eu lia um livro inteiro. Quando acabava uma página, eu me apoiava numa mão para virar a página com a outra mão. Isso estragou minha vista e arrebentou minhas mãos. Muitas vezes, tive que engessá-las, colocar luvas de parafina.

Quando viajávamos de trem, eu levava comigo dois tijolinhos enrolados em jornal para me apoiar na parada de mão, e o Chico, as claves. Quando o trem parava numa estação, todo mundo corria para o restaurante, e eu e o Chico corríamos para um lugar onde pudéssemos jogar claves e fazer paradas de mão. Comecei a perceber que nós dois estávamos ficando loucos.

Eu encontrava uma pedrinha no meio da rua e começava a chutar. Se acaso essa pedrinha caísse na boca-de-lobo, tentava abrir para pegála. Quando não conseguia, ficava ali até que alguém viesse me ajudar, até conseguir pegar a tal pedra.

Quando íamos viajar, eu fechava a mala, saía do quarto e, antes de trancar a porta, voltava para me certificar de que a mala estava realmente fechada. Aí, eu trancava a porta e ia embora. Mas, depois de dar alguns passos, eu voltava para me certificar de que a porta estava fechada. E, quando abria a porta, não resistia e ia ver se a mala também estava fechada. Era um inferno. Demorava horas para conseguir sair. Aí eu falei para o meu colega:

– Chico, nós estamos ficando pinéus! Vamos fazer psicanálise!

É verdade que ele estava se superando no malabarismo e que eu era o único do mundo, o único do mundo, a conseguir pular de parada de mão. Mas nós já estávamos ficando doidos demais. Fui ao médico, falei tudo para ele, fiquei seis meses em tratamento e me curei. O Chico não foi. Conseqüência: começou a ter medo de tudo, principalmente de entrar em cena. Chegava junto da cortina, mas quando o apresentador o anunciava ele corria para o banheiro. Depois, não conseguia mais sair do hotel, não queria saber de mais nada, só das claves. Para viajar ele tinha que tomar anestesia. Dormia e só acordava na outra cidade. Hoje, ele está na Casa dos Artistas do Rio de Janeiro. Você procure.

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