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O teatro, espelhos e a saúde

v pordeusMédico pesquisador imunologista, ator e educador popular. Fundou e coordena desde 2009 o Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, co-fundou em 2010 a Universidade Popular de Arte e Ciência cuja sede desde 2012 é o Hotel e Spa da Loucura no Instituto Municipal Nise da Silveira, RIo de Janeiro.

vitor.pordeus@smsdc.rio.rj.gov.br 

vitorpordeus@gmail.com


Introdução
As evidências são claras, milhares de médicos, terapeutas, ativistas do mundo inteiro se beneficiam e beneficiam seus pacientes com visões e práticas mais relacionadas com a natureza, a vida e o ser humano. A “Potência do intelecto ou a liberdade humana” é o capítulo V do livro Ética de Baruch de Espinoza, que entendeu que Deus é a natureza, ligado às forças naturais, que ousou entender o entender, a pergunta fundamental do conhecer o conhecer em uma espécie de macacos linguajeiros cujo modo de vida surge na linguagem na coordenação consensual de condutas, que são governados pelos símbolos construídos na relação com a natureza e os animais, vivendo e pulsando as mesmas conexões desse fenômeno vida. Esses símbolos constituem verdadeira hierarquia cultural com máximos efeitos políticos e comunitários, coletivos.
Nossa experiência envolvendo teatro comunitário, saúde coletiva e farta literatura científica internacional da antropologia médica nos alarmam para os profundos efeitos que as práticas culturais e simbólicas têm na saúde das coletividades e dos indivíduos. As experiências de miséria, violência, doença, exploração, opressão são absolutamente governadas por fatores irracionais, inconscientes, uma espécie de escravidão simbólica produzida por rituais, imagens, músicas, sons, educação, política pública onde uma parcela enorme da comunidade foi capturada por atores culturais através por via de regra da apelação sexual e ostentação financeira, o culto do Deus do Dinheiro, e estão todos afim mesmo é de farinha pouca meu pirão primeiro, disseminando um regime ditatorial competitivo que começa com as notas no colégio, aos vestibulares e todos os tipos de classificação e hierarquização que atende aos interesses políticos e econômicos de uma parcela ínfima da população que detêm os meios de produção artística, científica, bélica e econômica. Produzindo uma concentração de recursos inimaginável
produzindo hecatombes humanas culturalmente sustentáveis em toda parte do mundo conhecido.
Com isso adoecem os indivíduos seriamente, levando uma parcela enorme da comunidade, os pobres, a morrer precocemente e segundo estudos internacionais, em média, de cinco a dez anos antes dos cidadãos das classes favorecidas economicamente.

Neurônios em espelho
Na década de noventa neurocientistas descrevem um fenômeno neurobiológico denominado “Neurônios em espelho”(Mirror neurons, em inglês) que pode nos ajudar a entender de como a cultura e as ações culturais, em especial o teatro, transmitido pelas telas, podem ter uma implicação muito mais profunda do que podemos imaginar.
Cientistas de vários grupos relatam a ativação de grupos inteiros de neurônios em animais que observam ações, fato mais interessante ainda é que estes neurônios são ativados nas mesmas regiões do observador e do ator, simultaneamente, e várias regiões distintas do cérebro (Hearing sounds, understanding actions: action representation in mirror neurons. Kohler E, Keysers C, Umiltà MA, Fogassi L, Gallese V, Rizzolatti G. Science. 2002 Aug 2;297(5582):846-8.).
Como um efeito de espelho. Caracterizando experimentalmente o efeito de imitação explorado desde de tempos imemoriais para disciplinar, excitar, e controlar politicamente as coletividades humanas. Dessa maneira podemos compreender os efeitos poderosos e amplamente disseminados das mídias, do jornalismo, das telenovelas e do próprio teatro, que historicamente vem sendo controlados pelas elites governantes numa utilização inescrupulosa e antiética, sobre massas historicamente mal
educadas e informadas, levando ao cenário crítico que vemos hoje na saúde das coletividades humanas. A vida imita a arte e a arte imita a vida. Se pensamos duas vezes sobre isso se torna óbvio.

Cultura e Saúde
A esta discussão se somam enormes evidências científicas o trabalho experimental de gênios como o neurocientista chileno Humberto Maturana e a psiquiatra brasileira Nise da Silveira, que enfatizam o papel vital da cultura na espécie humana, Maturana utiliza mesmo o termo “Biologia-Cultural”; onde é expressão simultânea a estrutura biológica e a dimensão da linguagem, das ideias e dos símbolos. Nise construiu um Museu de Imagens do Inconsciente com mais de 350 mil obras produzidas por doentes mentais em mais de 60 anos de experiência, documentando os efeitos clínicos da expressão cultural em indivíduos severamente comprometidos psiquicamente. Poderíamos citar uma dezena de autores com experiências similares.
O próprio Espinoza afirma “é exatamente da mesma maneira que se ordenam os pensamentos e as ideias das coisas da mente que também se ordenam e concatenam as afecções do corpo, as imagens das coisas no corpo” afirmando há quase 400 anos atrás a íntima relação entre a cultura e a biologia, o simbólico e o corpo. Sendo assim, é questão vital, de saúde comunitária e individual, que revejamos o papel da cultura em nossa sociedade, hoje reduzido à entretenimento e diversão, completamente alienado da vida de relação, da sociedade, do ser humano, e nutrido pela inconsciência de muitos e
manipulação corrupta e oportunista de muito muitos, é transmitido aos bilhões de seres humanos gerando modificações neurobiológicas através dos neurônios em espelho, produzindo índices inaceitáveis de saúde pública, com perspectivas cada vez mais sombrias para a grande parte da população, que parece ter a única opção de se matar no trabalho, tendo seu sangue exaurido pelo lucro de uma pequena elite cada vez mais poderosa e opulenta.
Felizmente os diferentes povos e civilizações justamente por desenvolverem suas práticas culturais e rituais singulares, vem resistindo aos processos de esmagamento político e exploração tão abundantes na história da humanidade.
A partir da organização coletiva e a recuperação destas tradições culturais populares, revivendo os acúmulos e práticas culturais de nossa própria história ancestral é que temos possibilidade de recuperar nossa identidade profunda, autoestima e por consequência o sentimento de cuidar de si, do outro e do mundo. Produzindo força para a reorganização cultural e política que se faz fundamental se quisermos caminhar na direção da saúde pública e da liberdade.

O Arquétipo de Dionisos
Dionisos é o deus do vinho, do teatro, da festa popular, do carnaval. Em uma das muitas versões do mito, ele foi gerado pela mortal e princesa Tebana Sêmele em sua relação com Zeus, o deus dos deuses na mitologia grega. Hera, esposa e irmã de Zeus era uma deusa ciumenta que prontamente passa a perseguir o casal, gerando uma rede de intrigas envolvendo as irmãs de Sêmele que levaram a mesma a fazer com Zeus jurasse sobre a honra do Rio Ismeno revelar sua forma natural de Deus. Assim feito, Zeus revelou sua forma do raio do trovão fulminando Sêmele, grávida. Imediatamente, Zeus retira o feto do útero dela e o costura em sua coxa esquerda para completar o processo de gestação de Dionisos, que uma vez nascido é confiado às Musas do Monte Nise para que estas cuidem dele e o protejam da furiosa Deusa Hera. Assim Dionisos aprende os segredos das Musas e cria o vinho a partir da fermentação da uva, viaja por diferentes partes da Terra, aprende os ritos de povos antigos e desconhecidos, instalando os ritos da fertilidade do solo, da vida e da ressurreição em coros dançarinos, Tíasos, formados pelas celebrantes do Deus chamadas Bacantes, em referência a Baco um dos nomes do deus da festa. O culto dionisíaco constitui-se como um dos mais primordiais do mundo antigo, tendo suas origens confundidas com a própria origem das civilizações humanas, amplamente disseminado na Grécia e no mundo mediterrâneo, e tendo importância fundamental nos rituais religiosos primordiais na Europa, Oriente Médio e Norte da África. No culto de Apolo no Oráculo de Delfos, sempre as honras rituais se iniciavam por Dionisos que então dava lugar à seu complemento divino Apolo, deus do sol e da poesia e beleza. O culto Dionisíaco assumiu muitas formas, mas caracterizava-se fundamentalmente pela ingestão de vinho, a instalação de estados alterados de consciência, (daí também ser o Deus da Loucura, pois em uma das versões do mito, Hera o amaldiçoa com a loucura, depois convertida em loucura inspirada novamente graças a intervenção de Zeus), e manifestação da presença do Deus em seus coros báquicos, Deus manifestação, Brômio, Rumor, que traz a liberação da opressão, da tirania, cultuando as forças da natureza, celebrando a vida sempre a renascer.

O inimigo de Dionisos: a tragédia de Penteu
O dramaturgo grego Eurípedes escreveu uma das principais tragédias do teatro grego, As Bacantes, que conta o mito de Dionisos que após viajar por diferentes partes do mundo restaurando os ritos da fertilidade, chega a Tebas, sua cidade natal para instaurar a festa popular, com vinho, orgias públicas, música e teatro (o que se transfigurou historicamente no nosso carnaval). Entretanto, ao chegar em Tebas encontra o governo sob controle de seu primo, Penteu, filho de Agave, irmã de Sêmele, ambas filhas de Cadmo fundador da cidade ancestral. Penteu, cujo pai é o guerreio Équion nascido dos dentes do Dragão, é um homem tirano, arrogante, violento, opressor, enrustido que imediatamente proíbe os ritos dionisíacos contrariando a toda a cidade, e ordena que prendam Dionisos, as bacantes e seus adeptos, gerando enorme crise política e social, proibindo a cultura do povo, sua festa principal. O deus Dionisos permite que Penteu exerça sua arrogância apesar das advertências que Penteu recebe dos anciões de Tebas, como seu avô Cadmo e o adivinho cego Tirésias. Penteu então prende Dionisos e as bacantes nas cadeias públicas (hoje eles seriam presos nos hospícios e presídios). Com isso, Dionisos invoca suas sacerdotisas para que dancem em sua honra, ensandecendo todas as mulheres e os cidadãos de Tebas que saem para as ruas, cantando e dançando furiosamente os Ditirambos, os hinos dionisíacos (sambas-enredos). Os rituais vigorosamente executados estremecem os prédios públicos e derrubam o prédio da cadeia pública, liberando o Deus daquela situação humilhante. Penteu ao assistir esses
eventos fica abalado em sua racionalidade arrogante e opressiva, e é enfeitiçado por Dionisos que o enlouquece. Na cena seguinte, Dionisos oferece a Penteu o conhecimento dos ritos internos das Bacantes, e este já louco concorda em se travestir para que o Deus o leve aos ritos secretos. Dionisos então desfila com o chefe militar e político de Tebas travestido de Bacante para o assombro dos cidadãos Tebanos e entrega o General Penteu ao coro de mulheres para em seguida denunciá-lo provocando a fúria ensandecida das guardiãs de Dionisos, que em uma alucinação coletiva, destroçam Penteu vivo, confundindo-o com um leão. Na última cena Agave mãe de Penteu, ainda em estado alterado de consciência, entra em cena com a cabeça do próprio filho nas mãos, dizendo que elas haviam sacrificado um Leão em honra do deus Baco. Ao cair em si, vê a desgraça daquele que opôs tão ferozmente o Deus da fertilidade e da cultura popular. Os homens que vão contra os deuses ancestrais são punidos com o esquizodestroçamento frênico.

DioNise-se
Este mito revela o eterno conflito entre a arrogância dos seres humanos contra a as forças da natureza, bem como a cultura e os rituais que foram organizados ao longo de milênios para que se processem a regeneração afetiva e da terra, a rememoração das tradições culturais ancestrais, e sua importância para a saúde humana, para evitar a fragmentação, o destroçamento, o adoecimento que observamos em seres humanos distantes de sua cultura, de suas raízes.
É responsabilidade da cultura a produção da identidade de um povo, a construção simbólica de uma nação. E toda vez que a cultura colonizatória, arrogante, invasiva, que não respeita as tradições locais e serve à autoridade militar, da guerra, do dinheiro, as correntes dionisíacas inconscientes se agitam e levam aos fenômenos coletivos de mudança, de revolução, de restauração das práticas culturais resistentes de nossos ancestrais.
A psiquiatra Nise da Silveira revelou através de seu trabalho científico investigando a expressão cultural de doentes mentais graves que os arquétipos dos deuses antigos encontram-se intactos nas profundezas da psique. Geralmente esses arquétipos estão soterrados sob o aparelho cultural moderno, mas essa é apenas a superfície que em caso de adoecimento psíquico fazem emergir símbolos, imagens que remetem a importância fundamental das culturas ancestrais na constituição psíquica dos indivíduos e das coletividades.
E que os rituais culturais como a dança, o teatro, a pintura, o desenho e a escultura são as formas mais simples e mais eficazes na recuperação dos indivíduos adoecidos mesmo nos casos mais graves.
Assim sendo, somado à estas linhas de evidências científica e histórica, fica claro o quanto fomos levados a negligenciar o papel das culturas tradicionais, da história e da identidade dos povos e comunidades em nome de um verdadeiro processo de colonização cultural e psíquica, levando em especial as populações menos favorecidas educacionalmente/economicamente ao adoecimento, enfraquecimento e dominação para a exploração econômica e social por aqueles que servem ao poder militar e financista dos Generais Penteus, que hoje bem como em outrora, insistem em violentar a natureza e a humanidade em nome de seus projetos pessoais de poder e riqueza.
A chave desse processo de opressão está na cultura, nas práticas culturais comunitárias, na honra de nossos ancestrais que resistiram e fizeram todo esse corpo de conhecimentos chegar até nós. Todos devem dançar em honra do Deus Dionisos. Aqueles que não o fizerem, serão castigados com o esquizodestroçamento. A experiência de milênios demonstra.

Evoé, DioNise-se!

Referências sumárias
1- Maturana, H. O Habitar Humano em seis ensaios de biologia-cultural(2011)
2- Spinoza, B. Ética (1677)
3- Silveira, N. Ritual: Imagem e Ação. O Mundo das Imagens – (1992)
4- Silveira, N. O Tema Mítico de Dionisos. O Mundo das Imagens (1978)
5- Freire, P. Ação Cultural para a Liberdade e Outros Escritos(1968)
6- Eurípedes, As Bacantes (402 a.C.)
7- Haddad, A. Tá Na Rua: Teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura e ator sem papel. (2001)

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