Coluna 10 – Circo no Risco da Arte

Coluna 10 – Circo no Risco da Arte (1)

Acabo de ler o excelente livro francês O Circo no Risco da Arte, de Emmanuel Wallon (organizador), editado por esforço da Agentz Produções, lançado no Festival Mundial de Circo de três anos atrás (2009).

Este livro se mostrou leitura deliciosa pelos temas que sugere, pelas reflexões que inspira, pelas críticas que permite. E, pelos conhecimentos que distribui. É um livro de artigos, produzidos ao longo dos últimos 20 anos na França, provavelmente o local onde mais se produz circo de qualidade no mundo, atualmente. Foi na França que um Ministro da Cultura (Jack Lang, na gestão de François Mitterrand) entendeu que o circo era a linguagem artística mais popular e acessível à população e estimulou um programa estatal de apoio ao circo, com dimensões impensáveis para a época e hoje, para nós. Com isso, o Circo Francês ganhou uma força até agora só comparável à China e à União Soviética, no início do Socialismo. Hoje, a França conta com mais de 600 escolas, enquanto que o Brasil, muito maior e mais populoso, com uma tradição circense comparável à francesa, não tem mais que algumas dezenas de escolas.

O movimento circense francês é impressionante, importantíssimo e consegue ser responsável por inovações de grande importância, seja no campo estético (espetáculos e números), pedagógico ou teórico. Neste último se insere o livro. Vários autores escrevem sobre diversos temas, menos ou mais relevantes. Permito-me comentá-lo aqui, pois achei muito rica a leitura, ainda que questionável em alguns momentos.

O livro foi escrito e impresso em função de um debate muito importante na França. O circo, lá, não tinha o status de arte. Era simples “entretenimento”. Com isso, não era digno de uma política pública, nem de dinheiro público. Não era digno de respeito. Aos poucos, isso foi questionado, até que houvesse o subsídio ideológico e teórico para a criação do CNAC – Centro Nacional de Artes do Circo. O surgimento deste Centro, na opinião dos Franceses, foi o responsável pela criação do “novo circo” no mundo… Sabemos que isso é um disparate, já que, primeiro, Novo Circo não existe e, segundo, o movimento que foi assim denominado teve seu surgimento no mundo todo, simultaneamente. Paralelo aos louváveis avanços franceses, o Circus OZ era fundado na Austrália, o Cirque du Soleil era fundado no Canadá, o Circus Space em Londres e a Academia Piolim de Artes Circenses era fundada em São Paulo. E muitos outros exemplos. Mas, disparate à parte, o livro e o movimentos francês são, sem dúvida, importantes.

Emmanuel Wallon, o organizador, assina a introdução e localiza o sentido do livro. Fala sobre o risco da arte, que o Circo, aparentemente (na opinião de seus críticos nesse debate) não corre. E ele explica:

Não existe circo sem risco. Os artistas do picadeiro enfrentam ameaças econômicas às quais seus colegas das outras artes não têm nada além de uma vaga ideia. Sem a pretensão de serem mais subversivos que os demais, nem por isso deixam de pagar um preço alto por sua independência política. (…) Mas para eles o perigo é, em primeiro lugar, físico.
 

E vai adiante, aproximando as ideias dos diversos tipos de risco ao circo e as linguagens afins (circo, teatro e dança) na forma de argumentações, para dedicar ao circo o valor que lhe cabe. Assim, há algumas frases exemplares, por sua força e clareza, como:

O ato artístico solicita a presença antes de qualquer movimento (em oposição ao esporte, que solicita o movimento antes da presença). Seja mantido ou não por um fio narrativo, o espetáculo de circo procede de um encadeamento de pequenos dramas no qual o corpo é o mecanismo, o vetor, o quadro, enfim, o ator e seu teatro.
 

Ou também:

Contudo a beleza não possui unicamente uma parte ligada à proeza ou ao perigo: Ela tem suas próprias leis. A pirueta que o palhaço executa como um jeito de sair, o último giro do acrobata, o último lançamento do malabarista permitem, assim, que eles tracem um ponto de fuga. A perspectiva, dessa maneira, mantém alguns direitos nos turbilhões do circo.
 

Ainda que hermético, é sem dúvida interessante a forma de raciocinar. E, naturalmente, o que resulta desse raciocínio, ou seja, o livro.

Mais adiante, nas páginas que separam os grandes temas do livro (O ARTISTA EM DESEQUILÍBRIO, EMPRÉSTIMOS E MISTURAS, DO EXERCÍCIO À OBRA, FILIAÇÕES, REFERÊNCIAS, CRÍTICA, A CONSAGRAÇÃO PÚBLICA), o organizador usa trechos sugestivos, como:

Diante da diversidade de suas habilidades, o artista do circo se expõe deliberadamente ao desequilíbrio. Esse jogo entre o controle e a queda impõe que se corra o risco, tanto físico quanto estético. Ele exibe uma instabilidade dos corpos e dos objetos que remete a um modo de vida precário, mas também ao frágil estatuto da arte.
 

No artigo “Estética do Risco: Do Corpo Sacrificado ao Corpo Abandonado”, o autor Philippe Goudard discorre sobre o risco, seu aprendizado, sua tradução em estética, seu entendimento filosófico:

Assim como o músico usa o silêncio e o pintor a sombra, o artista de circo compõe sua obra com uma referência permanente à situação de estabilidade (posturas, figuras ou comportamentos).(…) No circo, essa alternância entre a situação estável e instável deixa aparecer uma estrutura cíclica do espaço e do tempo – Ela está certamente simbolizada e manifestada pelo círculo, elemento cenográfico fundamental do circo. A vertical, sua complementar, permite ao circo falar sobre o que é celeste e o que é subterrâneo. Na composição do artista ela marca a intensidade enquanto o círculo marca a duração.
 

Com isso, o autor dá ao circo uma perspectiva filosófica muito além do que propõe Alice Viveiros de Castro no seu grande O Elogio da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. (2)

Por fim, Goudard discorre sobre o sofrimento real do corpo circense, perguntando “o circo faz mal?” e respondendo: “Sim, faz mal” para chegar a um paralelo da dor ou do sofrimento como mola mestra para a criação da obra:

As três etapas da realização da obra (a aprendizagem, a composição e a exploração do espetáculo) correspondem a três situações do corpo do artista: o corpo ferramenta, o corpo objeto significante e o corpo explorado, ou sacrificado.
 

É um dos artigos mais interessantes do livro, para mim, que me interesso particularmente pela criação de espetáculos a partir do sentido do risco do artista circense em cena, assim como pela mistura de linguagens.

Permito-me interromper essa resenha para continuá-la em outra coluna. É preciso dar uma chance para que os raros leitores cheguem ao final…


(1) WALLON, Emmanuel (organizador). O circo no risco da arte. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2002, 189 páginas.

(2) CASTRO, Alice Viveiros de Castro. O Elogio da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos/Petrobras, 2005.

Rodrigo Matheus, 06 de Junho de 2012

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