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Bicho de São Sererê (Chacovachi)

in Revista Anjos do Picadeiro 3 – Publicação Integrante do Evento Anjos do Picadeiro 3, realizado em dezembro/2000 na cidade do Rio de Janeiro, pp. 22-26.


O bicho de São Sererê, segundo Plínio Marcos, é meio camelô, meio artista, e o seu picadeiro é a rua.

A cobertura do meu circo é o céu! Dizia Elias Bismarck, mestre de muitos bichos.

Tigre, depois de uma carreira de flip-flaps e saltos mortais, desafiava a estrela da ginástica olímpica da época:

– Aí, Nádia Comanéti, quero ver você saltar no chão da praça.

Já o Alexandre, enfiava pregos no nariz, com um martelo, cantando boleros. Como cantava bem o negro Alexandre.

Há muito não via um bicho. Plínio Marcos, Elias, Tigre e Alexandre já morreram. É verdade que há pouco tempo estive com o Cobra Mansa. Mas o Cobrinha não está bicho de São Sererê, não deixou de ser, mas atualmente não está. Não vende mais pomada de peixe boi, não exibe mais o peixe elétrico, não salta mais por dentro do aro de facas, não roda mais o chapéu nas praças. Ele agora se dedica exclusivamente à capoeira de Angola.

Então, quando vi Chacovachi atuar no picadeiro dos Arcos da Lapa, para uma platéia endoidecida, na madrugada de uma sexta-feira de lua cheia, exultei: é o bicho de São Sererê.

Noite argentina na Lapa

Lá em cima, a lua cheia.

Cá embaixo, a rua cheia.

Noite hetaíra.

Oswald de Andrade

A platéia nem aí. Não estava ali pra ver circo, transbordara dos cabarés e das ruas da Lapa. No chão, um pó branco delimitava o círculo sagrado.

Que pó era aquele?

Farinha, açúcar ou pirlimpimpim?Lá em cima, a lua cheia.

Cá embaixo, a rua cheia.

Noite hetaíra. De repente, começou.

Chacovachi adentrou o círculo.- Boiola!

– Babaca!

– Maluco!Temi pelo colega. Impávido, ele caminhou até o centro do círculo.

E então, aconteceu o pior: ele falou.

A galera não perdoou o seu portunhol:

– Fala direito.

Mas Chacovachi, como já disse é bicho de São Sererê. E em pouco tempo, a platéia estava na palma da sua mão. Até ôla fizemos com ele.

Chacovachi convidou um rapaz a entrar na roda.

O rapaz relutou, mas acabou cedendo. Três passos adiante, Chacovachi, gentilmente, pediu que o rapaz deixasse a cerveja no chão. Não ficava bem entrar na roda com uma garrafa na mão. Mais uma vez o rapaz cedeu. Três passos adiante, Chacovachi, num pinote, foi até a cerveja e a bebeu num gole só.

Olho aberto, meu filho, com os bichos de São Sererê.

E a noite argentina adentrou a madrugada.

Números se sucederam, aéreos e de pista, mas nenhum deles com a força de comunicação do apresentador-palhaço.

Até que entrou na roda o bailarino do diabolô,

E o deus da dança portenha baixou na Lapa.Na platéia, os corpos balançavam e os olhos não sabiam se seguiam a dança do bailarino ou a do diabolô quando o pau quebrou ao lado.Pernadas, socos, pontapés e garrafadas. Um golpe errado e o gerador que iluminava a cena foi nocauteado.Black-out. Gritos, vaias, xingamentos e logo depois, o silêncio das descobertas.O bailarino do diabolô, iluminado pela lua cheia, continuava a bailar. E o diabolô, que era branco, ganhou luz própria e toda vez que subia quase encostava na lua. Noite hetaíra.

 

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