Público e privado: entre aparelhos, rodas e praças. (capítulo livro incluído)

MERHY, Emerson Elias – “Público e privado: entre aparelhos, rodas e praças”. Capítulo Livro: In: FRANCO, Túlio Batista; MERHY, Emerson Elias – Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde. São Paulo: HUCITEC, 2013. 3º Plano: Ferramentas Analisadoras dos processos de trabalho, p. 223-229.

Campinas, fevereiro de 2006, debaixo de chuvas intensas.

“Tinha nascido do lado de uma igreja católica, construída numa elevação que a colocava um pouco acima das casas ao lado. Á frente havia um adro bem amplo, com jardins e muros; além de um pátio bem generoso.

Cedo, quando acordava e levantava, caia da cama já no adro; assim como uma dezena de garotos de 8 a 16 anos. Juntavam-se, logo após um café da manhã imposto pelas mães, e com uma bola na roda invadiam o adro e a transformavam em algo só deles: um campo de pelada.Por várias vezes eram denunciados pelo padre da igreja como invasores e perturbadores. O carro de polícia, um Cosme e Damião, chegavam de sirene ligada e por um tempo acabava com aquela festa. Meninos corriam para tudo que era lado. Os policiais ameaçavam prendê-los. No fim, todos escapavam. A polícia se retirava. E, o adro virava praça de novo.”

Nesta pequena história, de fato vivida no Bairro da Bela Vista em São Paulo, nos anos 1950, há muitos dos elementos que gostaria de colocar aqui nesta pequena introdução ao livro do Giovanni.

Destaco, em primeiro lugar, a ideia de um lugar público constituído como um aparelho com funcionalidade bem definida: ser um adro de uma igreja. Uma função que torna o lugar público em uma coisa de uso privado: só faz sentido para certos viventes e crentes, cujos interesses naquele espaço o tornam extensão de uma certo modo simbólico de produzir aquilo como lugar de fé cristã.

Enfim, uma produção e apropriação do espaço, enquanto possuidor de um sentido bem preciso e bem definido, com um valor de uso bem delimitado. O público e o privado constituem-se, claramente, prevalecendo uma certa conformação do público por formas bem privadas e específicas de constituí-lo. Esta figura, para mim, assemelha-se a noção de aparelho institucional, como: um partido, um aparelho estatal, uma máquina governamental, uma repartição de uma empresa, uma empresa em si. Em todos, a funcionalidade definida é imperativa do lugar, é instituinte. Dá a cara do instituído. A dobra público/privado se expressa como relação bem instrumental e só esta razão dá conta deste processo. Por exemplo, uma organização fabril que não produzir o seu produto, não é uma organização fabril; e como tal, ao perseguir esta alma particular, captura privadamente todos os seus lugares públicos. Entretanto, como em todos os formatos aquiridos – aparelho, roda e praça – , como veremos, adiante, não é indiferente os tipos de atores sociais/sujeitos que estão operando a produção do lugar, pois constituir certo valor de uso é, antes de tudo, uma operação simbólica e imaginária. Como diz Ruben Alves, parafraseando: para algo ser útil ela deve ser simbolicamente constituída como necessidade.

Destaco, em segundo lugar, a roda que os meninos constituíram fabricando suas equipes de futebol e invadindo o aparelho adro. Reuniram-se e fizeram ofertas um para o outro, construíram entre si acordos e regras. Organizaram-se para atuarem como um coletivo, mas onde cada um pudesse jogar do seu jeito. Jogar tanto para produzir o acordo, quanto para participar do que mais queriam: jogar bola. Depois de vários movimentos, formaram os times. Dividiram o adro, imaginariamente, em um campo de futebol de rua. Instituíram os gols e ordenaram os times. Iniciaram o jogo. Isso funcionou direito até a chegada da polícia. Aí, aquela roda dos meninos foi desfeita por uma imposição muito forte e invasiva da lógica funcional anterior: a do aparelho que o adro era, como espaço da igreja; e não campo de futebol. Mas, o interessante é que existindo os meninos e saíndo a força impositora, o adro seria ocupado de novo pela roda de meninos para virar de adro da igreja em campo de futebol, onde as regras eram outras, e acoordadas pelo coletivo, e o modo de ser operada obedecia a outros tipos de lógicas. Chegando bem perto poderia ser visto o encontro “entre” o adro aparelho e o adro roda, um dentro do outro como uma dobra; veria-se o modo como os meninos estabeleciam em ato acordos e regras, mas se permitiam altera-las para adaptar as características do jogo ao coletivo em ação. Um time teria mais ou menos jogadores conforme a quantidade de meninos. O tempo do jogo poderia variar. Ter ou não goleiro era algo a ser decidido em ato. Enfim, o modo de construir a funcionalidade do espaço que estava sendo produzido era muito mais elástica e muito mais disponível ao grupo que estava constituído e em ação. Entretanto, todo este processo tinha um objetivo final imposto a ser atingido: organizar a ação do coletivo para produzir um jogo de futebol.

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