A pedra do reino

SUASSUNA, Ariano. A pedra do reino. São Paulo: José Olympio, 2007.

 

 

 

 

 

Sinopse: A pedra do reino’ é apresentado como um romance autobiográfico narrado por Dom Pedro Dinis Ferreira-Quadrena, o auto-proclamado ‘Rei do Quinto Império e do Quinto Naipe, Profeta da Igreja Católico-Serteneja e pretendente ao trono do Império do Brasil’. Quaderna, obcecado em criar uma versão essencialmente nordestina para o livro ‘Compêndio narrativo do peregrino da América Latina’, de Nuno Marques Pereira, se descreve como descendente dos verdadeiros reis brasileiros – que nenhuma relação têm com aqueles ‘imperadores estrangeirados e falsificados da Casa de Bragança’. Seus antepassados são, na verdade, os legítimos reis castanhos e ‘cabras’ da Pedra do Reino do Sertão, que fundaram a sagrada Coroa do Brasil. As desventuras de Quaderna e a trágica história de sua família na cidade de São José do Belmonte, no interior de Pernambuco, funcionam como o ponto de partida para Suassuna promover suas misturas perfeitas – o rico com o pobre, a arte com o cotidiano, a ingenuidade com a malícia, a realidade com a fantasia, a odisséia com a sátira, a Europa com o sertão.

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Zero Hora / Data: 16/6/2007
O reino pedregoso de Suassuna

Ricardo Barberena – Lembro-me do contraste entre o respeitoso silêncio e as sonoras gargalhadas numa tarde no Salão de Atos da UFRGS. Tratava-se da aula inaugural do ano de 1996. O motivador desses espasmos de comicidade e admiração era Ariano Suassuna. Como se fosse um Quixote sertanejo, o escritor hipnotizou uma platéia de quase dois mil alunos com a sua técnica de encantamento que remonta aos primórdios da experiência literária: a arte de narrar histórias.Nessa atmosfera de oralidade impregnada de sentidos míticos e mágicos anticartesianos, perpetua-se um espírito poético oriundo do cordel nordestino que introduz um sertão sonhoso e brutal. Suassuna instaura uma enigmática territorialidade na qual emergem deuses e diabos, sob a lei do acaso e da fatalidade. Esses seres-ameaçadores resultam de um sopro de imaginação que produz sentidos desérticos e espinhentos de uma terra-fera: o reino sertanejo do delírio e do sacrifício. Enraizada numa sagração onírica, a narrativa também propõe um diálogo entre o Nordeste e a Península Ibérica através de um audacioso projeto estético que intercambia a poesia oral com as imagens e os sons armoriais. Herdeiro da heráldica medieval, o Movimento Armorial nasce com o objetivo de salvaguardar um manancial de insígnias, brasões e bandeiras que constituem a força imagística da cultura popular (dos estandartes de maracatus às bandeiras de clubes de futebol). Ariano acabou desencadeando uma nova conceptualidade no interior da arte brasileira que navega entre iluminuras arabescas e acordes de rabeca. O escritor paraibano busca uma abertura de significados que convidam o leitor a reconstruir uma tradição literária marcada por uma cosmovisão de elementos híbridos e (pluri) historiográficos: o texto cômico de Plauto, os figurantes da commedia dell’arte, as histórias coletivas da falação cotidiana.O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, publicado em 1971, talvez seja o mais audacioso livro de Suassuna. A obra se configura como uma epopéia satírica e apocalíptica, constituída por alucinações e desventuras de uma espécie de cronista-fidalgo (Pedro Dinis Ferreira Quaderna). O romance-memorial-poema-folhetim se apresenta dividido em folhetos que focalizam a prometida volta de dom Sebastião por meio de um banho de sangue nas pedras do Reino sertanejo. Na crueza espinhenta e indomada da ressurreição do mito, nasce a esperança da contemplação de um reino presentificado por duas enormes pedras onde pingos prateados brilham ao sol. Como esfinges a serem decifradas, as pedras trazem consigo o mistério nordestino de uma metamorfose visceral: como o fraco se torna forte, como o real se torna fantasia, como a memória se torna lenda. Segundo Quaderna, “Deus fala por meio das pedras”. Assim, é preciso que ouçamos esse pedregoso discurso que brota da tênue separação entre a anedota tragicômica e o lamento da desesperança lírica. Os enigmas do Reino estão camuflados nas pedras que resistem ao tempo, simbolizando a força de uma cultura armorial-popular brasileira que, formada pelo sangue dos seus heróis, profetas e santos, permanece renovada na escrita de Ariano. Entre o riso, o sonho e o desvairio, evidencia-se, portanto, a representação de uma brasilidade que mergulha num mundo maravilhoso, orquestrado pelas suturas razão-desrazão e homem-pedra. O sertão continua sendo o lugar do encontro com deuses ancestrais, pedrificando-se como uma fonte perpétua de mitologizações populares.Uma das lições aprendidas no interior da pedra é a capacidade de dizer sim à vida, apesar da aridez das mortes trágicas, da secura da alma rachada do sertanejo. Nesse rochedo de narrativas, a pedra aprisiona e adormece. Que Ariano continue trilhando esse pedregoso reino da imaginação, encastelado no canto improvisado, no folheto, no romance, nas danças populares, no espetáculo de marionetes, nas histórias sem dono.

Valor Econômico / Data: 17/3/2006

“Ainda continuo radical”
Mônica Scaramuzzo

Irrequieto. Rígido. Contestador. Não necessariamente na mesma ordem. O diretor teatral José Alves de Antunes Filho, ou simplesmente Antunes Filho, até tenta fugir dos estereótipos que lhe são atribuídos, embora admita indiretamente que é uma pessoa difícil e que está sempre na contramão da cultura. “Os estereótipos, não sou eu que faço, as pessoas imaginam”, costuma dizer. Aos 77 anos, paulistano crítico, Antunes não pára de falar um só minuto e emenda um raciocínio no outro. No momento, suas idéias estão a serviço da adaptação de “Romance d’A Pedra do Reino”, texto de Ariano Suassuna, que tem estréia prevista para o segundo semestre, em São Paulo. Concentrado, ele passa entre 10 e 12 horas por dia dedicado aos ensaios da peça. De segunda a sexta-feira, feriados e, às vezes, aos sábados. “Não tenho uma vida pessoal. A minha vida é sempre social. É o espetáculo que estou fazendo. O teatro é uma forma de eu me processar.” As palavras soam duras demais, mas é até uma forma de Antunes rir de si mesmo. Nesta entrevista concedida ao Valor, o diretor de clássicos como “Romeu e Julieta” (Shakespeare) e “Vereda da Salvação” (Jorge Andrade) tenta reverter a velha imagem de um diretor “linha-dura” e diz que está mais generoso. Entre um detalhe e outro de seu trabalho, revela particularidades, como a sua transformação em um homem mais flexível, talvez como efeito colateral da passagem do tempo. Nada mal para um artista conhecido por sua direção nervosa e perfeccionista. Ao vasculhar as memórias de um dos maiores nomes do teatro nacional, depara-se até com a alma de um grande apostador em cavalos e um habitual jogador de cartas. “Foi muito boa a vida que tive. Vivi na chamada esquina do pecado [São João com a Ipiranga, em São Paulo]. Convivi com os malandros e eles me ensinaram muito. Precisei viver pelas curvas terríveis. Fiz tudo por inteiro. Foi uma experiência fundamental”, conta. Em suas reminiscências, também há espaço para a arte da conquista de muitas mulheres. Hoje, porém, diz que sua vida é o CPT e que acha o baralho “muito chato”. Mas ainda há tempo para o prazer do jogo: o futebol. Antunes é um são-paulino ferrenho e vai esperar o “espetáculo da Copa do Mundo” passar para estrear “Romance d’A Pedra do Reino”. A peça vai ser o desfecho de uma longa jornada obra adentro. Na verdade, a escolha do texto não foi difícil, mas os entendimentos com Suassuna durante a adaptação foram mais complicados. Antunes começou a fazer a adaptação da peça há 15 anos, mas interrompeu o trabalho após constantes desavenças com o autor. “Brigamos muito. Agora ele permitiu fazer tudo o que eu quisesse. Acho que sempre respeito o autor. Digo o que ele pensa, sem escamotear nada.” Antunes Filho costuma dizer que não se furta aos bons autores para adaptar suas peças. Para ele, Suassuna é obrigatoriedade, um néctar. Assim como Guimarães Rosa, com “Grande Sertão: Veredas”, a mais completa das obras, define o diretor. Inspirada em um episódio ocorrido no século XIX, no município de São José do Belmonte, a 470 quilômetros do Recife, “Pedra do Reino” retrata uma seita que tentou fazer ressurgir o rei Dom Sebastião, transformado em lenda em Portugal depois de desaparecer na batalha de Alcácer-Quibir, quando enfrentou os mouros no Marrocos. Sob o domínio espanhol, os portugueses sonhavam com o retorno do rei que restauraria a nação usurpada. Tudo ou NadaAntunes divide sua carreira em antes e depois de “Macunaíma”, inspirada na obra de Mário de Andrade, em 1978, considerada um marco da dramaturgia nacional. A ruptura com o teatro comercial, antes de 1978, como ele mesmo lembra, o fez investir no teatro para um público que “quer pensar”. Essa é a tarefa do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), criado em 1978, com sede no Sesc (Serviço Social do Comércio), na Vila Buarque, em São Paulo, coordenado com mão de ferro por Antunes Filho. “É uma tarefa que o CPT tem cumprido, de ensinar as pessoas a pensar. Dizem que faço a cabeça das pessoas, mas não faço. Eu as estimulo. Dou livro para lerem. Livros e mais livros. Ensino técnica porque isso está um pouco esquecido”, diz. Com um acervo de mais de 4 mil vídeos e livros, o CPT é o centro formador do ator antuniano. De lá, saíram nomes como Luís Mello, Giulia Gam, Flávia Pucci, entre outros. “As pessoas que vêm para o CPT chegam com uma formação de cinema e arte comercial. Temos de tirar isso da cabeça. Então, eu faço a cabeça nesse sentido.” Apesar de parecer clichê, Antunes defende a tese de que beleza é fundamental. “Independente de você estar politicamente correto, acho que a estética tem de prevalecer. Neste sentido, o CPT cumpre a tarefa social de trazer gente nova. De formar gente. Não é importante, às vezes, que essa pessoa saia um grande ator. Mas que saia com alguma coisa modificada. E ver que a vida não é só consumismo. Porque o consumismo é uma praga desgraçada”, observa. Trabalhar com Antunes Filho não é fácil. O diretor é rígido e exigente – embora ele se considere mais maleável. O ator tem de se entregar, se “livrar dos estereótipos, essa muleta”, diz. “Gostamos de filosofar teatro. Aqui no CPT gostamos de literatura. E não de fazer teatro pelo teatro.” O diretor sabe que vai na contramão do teatro dos grandes espetáculos, hegemônico na cena contemporânea. Não se incomoda, mas se aborrece um pouco. “Às vezes é chato. Você faz as coisas sérias e alguns outros fazem aquela coisa de consumo idiota. Isso aborrece”, diz. “Não gostaria que o mundo fosse assim. Gostaria que se apreciasse o que é bom, o que é autêntico, o que é verdadeiro, e não simplesmente estar na onda do consumo. Os próprios jornais são culpados disso. Antigamente a estética comandava a cultura. Hoje em dia é o jornalismo que comanda a cultura, de certa maneira, com manchetes, política, eventos sociais. Não importa mais a beleza, não importa a estética.” Para ele, o que importa é que há um público cativo para o CPT. “Sempre tem seu público, e lota. Temos um público que está precisando de oxigênio cultural. O CPT é o oxigênio cultural”, diz sem falsa modéstia. Ele se abastece dos grandes autores para montar suas peças. Shakespeare, Jorge Andrade, Nelson Rodrigues. Promete fazer novamente uma montagem de Nelson Rodrigues, talvez depois de Suassuna, mas garante que não vai se repetir. “Tenho vontade de fazer um Nelson Rodrigues maluco. Eu já fiz Nelson Rodrigues de tudo quanto é jeito.” E o que é um Nelson Rodrigues maluco? “É um poeta, sempre. Diziam que ele era reacionário, pornográfico. A gente mostrou que ele era um poeta. Ele é um maldito. Gostaria de reerguer Nelson Rodrigues de outra maneira. Fazer um espetáculo diferente dele”, responde, sem fugir dos estereótipos atribuídos ao autor maldito. Antunes Filho diz que está mais tolerante, mas não tem muita paciência para assistir a televisão. Somente a filmes e a documentários. Quando vai ao teatro, diz que não quer fazer comparações. Afirma ter visto boas peças ultimamente e que tem ido muito ao cinema. Mas se recusa a voltar a fazer longa-metragem, mesmo com a nova fase do cinema brasileiro. Em 1970 dirigiu o filme “Compasso de Espera”, que recebeu prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte. “Se eu fizer cinema, tenho de entrar na indústria cinematográfica, se não vou ter outro fracasso. Prefiro ficar quieto. Gostava de cinema de autor. Fazer cinema de historinha, com criança chorando, não.” Para o diretor, “Cidade de Deus”, dirigido por Fernando Meirelles, é extraordinário. “Depois do Cinema Novo, para mim é Fernando Meirelles. É difícil fazer um filme do gabarito de Meirelles. Será difícil ele se superar”, acredita. Para ele, está cada vez mais difícil fazer rupturas no universo comercial. “É uma época devastadora. Sou muito pessimista neste momento. Todo o meu otimismo está sendo sufocado. Não se tem mais a liberdade de pensar. Mesmo a esquerda, é uma esquerda sem dialética, sem considerações. É uma esquerda individual demais. Hoje em dia tudo é dogmático. É muito difícil você falar hoje. Tem de agir de uma maneira mais ou menos conveniente para que as pessoas te aceitem. Senão você corre o risco de ser execrado”, diz. Mesmo com certo ceticismo, Antunes Filho diz que tem feito suas próprias rupturas com as séries de “Prêt-à-Porter”, iniciadas em 1998, e considerada um experimentalismo do CPT. “Considero o ‘Prêt-à-Porter’ [em sua sétima edição] talvez a coisa mais importante do CPT. Porque os alunos escrevem, interpretam e dirigem. Acho o melhor exercício de teatro que existe. Sai do estereótipo, e você pode fazer o que você quiser, clássico, comédia de costumes e tragédia”, argumenta. Mesmo com seu público cativo, Antunes Filho acredita que o espectador de teatro de hoje quer o consumismo fácil. “Teatro é uma forma de você consumir. Mas há um público mais preparado culturalmente para a televisão e que não saca direito as coisas. Então qualquer coisa que se faça, é um encantamento imediato”, diz. O diretor não nega as raízes. Diz ter orgulho do teatro amador, no qual começou sua carreira, na década de 50, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). “Hoje o teatro amador é conhecido como teatro experimental”, diz. “Eu já estava marcado. Tinha sensibilidade para ver filmes. Viajei muito, fui para Europa. Fiquei em museus dias inteiros. O trabalho do diretor é abrangente. Tem de ler, tem de viajar, ficar em museus para entender o que é a pintura. Aprendi com a Bonomi [Maria Bonomi, artista plástica com quem foi casado e teve um filho]. Você tem que se preparar de todas as maneiras.” Durante a década de 50, o diretor realizou os primeiros teleteatros da América do Sul para as emissoras de TV Tupi e Cultura. Sente saudades de “quando se fazia televisão de verdade”. Em 1953, dirigiu seu primeiro sucesso, “Week-End”, com Nicete Bruno e Paulo Goulart. Em 1965, fundou o Teatro de Esquina, para o qual dirigiu “A Megera Domada”. Nove anos depois criou a Associação de Produtores de Espetáculos Teatrais de São Paulo. Mas foi se consagrar em 1978, com o grupo Macunaíma. Ao longo da carreira, recebeu mais de 60 prêmios, dentro e fora do país. Quando olha para trás, não se arrepende de nada. Mas como se vê? “Uma pessoa mais generosa do que antes. Mais compreensiva. Eu era muito mais radical. A gente vai aprendendo. Mas ainda continuo radical.”

Gazeta Mercantil / Data: 4/3/2005
Pedra de Suassuna

Romance d’a Pedra do reino encabeça a reedição das obras do escritor e dramaturgo paraibano

Paulo Bentancur Haja fôlego! Mas ao leitor não tem faltado quando ao autor não falta. E é o que sobra no romance síntese de nossa mitologia nacional: resumida e simpaticamente chamado de A pedra do reino . Em se tratando de um monumento, impressiona que mais de três décadas (a primeira edição saiu em 1971) não lhe deram fama de ilegível- até porque o estilo de Ariano Suassuna (João Pessoa, PB, 1927) passa longe de qualquer dificuldade; o desafio que ele nos lança é acompanhar a febril imaginação, a ação quase carnavalesca de um cenário que ele recupera desde as raízes mais remotas que fizeram não só nossa brasilidade mas a fizeram antes de tais raízes serem transportadas para cá em caravelas. O quilométrico romance põe em movimento, a partir de uma cela Onde um prisioneiro, Dom Pedro Dinis Quaderna, observa a vila na qual está cativo e seus murmúrios milenares, seus santos, seus guerreiros, todos à sombra impossível de um sol escaldante. Estamos no começo de uma impressionante saga de pés-no-chão rodeados de transcendências, mescla do mais deslavado folhetim, passando pela irresistível natureza picaresca e chegando à gravidade profunda que contém o gênero épico. O sertão que se distende ante Suassuna é uma espécie de anti-“Vidas Secas”. Naquele, o inferno se constrói pela desertificação, alimentado pela migalha de nem haver esperanças, nem mesmo linguagem, numa quase pantomima do socorro que não chega ao luxo do desespero. Agora, em “A pedra do reino”, é o contrário. O sol lá está, acima, reinando, com suas fagulhas e sua luz ameaçadora. Porém, cá embaixo, os homens são inumeráveis, as cenas a que se entregam são cruentas de fato, miraculosas outras. Há emboscadas, há degolas, há assombrações, há reinos, há castelos, há miragens, há figuras que mais pertencem ao sonho que à vigília. E o sertão narrado é tão fértil quanto um mar no qual a vida brotou. Condenado para pagar pelos crimes da poderosa família Quaderna, que se diz verdadeiro Rei e Profeta, arruinado, não dispõe de meios para se defender. Apesar de seus m é r i tos de “Poeta, Astrologo e Decifrador”, e apesar da nobre estirpe de onde seu sangue provém, “da Pedra do Reino”. É ele a única testemunha de bárbaros e fantásticos acontecimentos. Ninguém pode depor em seu favor. Suassuna levou doze anos escrevendo o livro. Nesta 5ª edição (é pouco, comercialmente falando, para tal proeza literária em tanto tempo de circulação) o texto foi alterado, passagens cortadas, outras acrescidas, outras reescritas. O que não mudou (nem deixou o livro datado, o que é um feito) é a linha do fantástico-maravilhoso a que ele se filia talvez porque nesse caso o autor não tenha seguido nenhum modismo. Seu tema é legítimo e se o fizesse hoje, seria nesse cenário de fantasmagorias e simbolismos que infestam a região tanto geográfica quanto histórica que o artista estuda e reproduz. Eis a especialidade de Ariano Suassuna, traduzir, não a si mesmo nem a suas obsessões, vício de muitos cabotinos que julgam sua arte a de todos, mas o contrário, traduzir a arte de todos para si mesmo, com tal ordem e riqueza que põe a si mesmo nela e os põe em seu universo particular, realizando o difícil, quase impossível, encontro entre artista rigoroso e gente comum do povo. Alinha os temas, as imagens, classifica-os, vindo desde a mais remota antiguidade, e suas leis poéticas, até manifestações populares da contemporaneidade. Experiência acadêmica Iniciação à estética foi nascendo aos poucos, a partir de aulas que Ariano dava a seus alunos da cadeira de Estética no Centro de Filosofia e Ciência Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Estávamos em 1956 e o professor anotava caprichosamente cada ponto debatido em aula: Platão; Aristóteles; Plotino; Kant; Hegel; as categorias da beleza; arte gratuita e arte participante; oficio, técnica e forma na arte; hierarquia e classificação; e todos os gêneros, da arquitetura, passando pela música, às danças e espetáculos. Isso sem esquecer as naturezas da estética, a filosófica, a empirista, a psicológica, a historicista, a sociológica e a fenomenológica. Tal conjunto se nos apresenta árido, visto de fora. Porém, síntese afiada e simultaneamente palatável das anotações do professor, que as reuniu durante dezessete anos (a primeira edição saiu em 1973), “Iniciação à estética” é mais que uma iniciação. Um curso completo e único no gênero feito por um escritor-pensador do naipe de Suassuna. Aliás, podemos chamá-lo de autor? Devido a seus esforços incalculáveis para recivilizar-nos com nosso próprio passado e considerando que ele transita entre a ficção, a comediografia (“Auto da Compadecida”, 1955) e o ensaísmo, Ariano Suassuna, mais que representar uma cultura, constitui-se nela.

Correio da Bahia / Data: 26/2/2005
A alquimia literária de Suassuna

O escritor combina conceitos e teorias em dois relançamentos

Cláudia Lessa Em dois livros cultuados, Ariano Suassuna mescla os discursos popular e erudito (`Romance d´A pedra do reino´) e mergulha em teorias de filósofos (`Iniciação à estética´) O Romance d´A pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, do escritor Ariano Suassuna, lançado em 1971, estava fora de catálogo há mais de 20 anos. O livro, considerado na época como uma obra-prima da ficção nordestina após o ciclo do romance regionalista da década de 30, foi responsável por explorar novos rumos para a literatura nacional. Em boa hora, a José Olympio reedita a publicação antológica, assim como Iniciação à estética, também do autor pernambucano. Este último é tido como o mais importante trabalho escrito no Brasil sobre a estética filosófica. O nome de Ariano Suassuna, 77, nascido na Paraíba e morador de Pernambuco, remete invariavelmente ao famoso e prestigiado O auto da Compadecida. Mas, sem dúvida, é o épico A pedra do reino – definido pelo próprio autor como um “romance armorial popular brasileiro” – sua grande obra-prima. Escrito entre 1958 e 1979, a prosa de ficção foi laureada com o Prêmio Nacional de Ficção conferido em 1972 pelo Instituto Nacional do Livro. Ineditamente, ele combinou ali dois gêneros opostos de discurso: o erudito e o popular. Rachel de Queiroz foi uma das personalidades do mundo literário a opinar sobre o feito do advogado, professor, teatrólogo e romancista: “Só comparo Suassuna, no Brasil, a dois sujeitos: a Villa-Lobos e a Portinari. Neles, a força do artista obra o milagre do material popular com o material erudito, juntando lembrança, tradição e vivência com o toque pessoal de originalidade e improvisação”. Carlos Drummond de Andrade também deu seu parecer: “Extraordinário romance-memorial-poema-folhetim. (…) Ah, escrever um livro assim deve ser uma graça, mas é preciso merecer a graça da escrita, não é qualquer vida que gera obra desse calibre”. No texto da orelha dessa quinta edição, Bráulio Tavares escreveu: “Trata-se de uma obra híbrida e bárbara, uma colcha de retalhos onde a prosa profética convive com o trocadilho; a iluminação mística é contrabalançada pelo versinho fescenino e longas citações de obras históricas são ilustradas por desenhos que lembram os rébus ou enigmas figurados dos almanaques dos charadistas”. Apresentado como um romance autobiográfico, A pedra do reino é narrado por Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, que se autoproclamava Rei do Quinto Império e do Quinto Naipe, profeta da Igreja Católico-Sertaneja e pretendente ao trono do Império do Brasil. Tudo ocorre numa Paraíba alucinada e aflita, onde Quaderna, obcecado em criar uma versão nordestina para o livro Compêndio narrativo do peregrino da América Latina (de Nuno Marques Pereira), se diz descendente dos reis brasileiros. Os infortúnios do protagonista e a trágica histórica de sua família na cidade de São José do Belmonte, interior pernambucano, são o ponto de partida para Ariano Suassuna dar início às suas fusões entre o rico e o pobre, a arte e o cotidiano, a ingenuidade e a malícia, a realidade e a fantasia, a odisséia e a sátira, a Europa e o sertão. Fazendo uso da metalinguagem, o escritor cria (através de Quaderna, seu herói burlesco) uma peculiar epopéia sertaneja que remetia ao seu desejo, na época, de ver estabelecido no país uma monarquia de esquerda. Para compor a obra, Suassuna se baseou na literatura de cordel, nos repentes e na embolada, principais elementos da cultura popular nordestina. Assim, deu origem a um universo místico, criando uma espécie de Reino de Camelot em plena caatinga. Ao fazer a ponte entre o erudito e o popular, o escritor causou um rebuliço no meio intelectual brasileiro, bem como atiçou a criatividade carnavalesca da escola de samba carioca Império Serrano que, em 2002, desfilou sob o tema A pedra do reino. Astros – Dramaturgo e romancista renomado, Ariano Suassuna se estabeleceu também como teórico e crítico. Ávido pesquisador da cultura popular, o escritor atuou por longos anos como professor universitário. A experiência na disciplina estética, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco, gerou o livro Iniciação à estética – considerado a mais importante publicação sobre o tema editado no Brasil. Ariano Suassuna explicou, na época do lançamento do livro, que o conteúdo escrito nasceu da necessidade de sintetizar todas as reflexões realizadas durante os anos em que lecionou a disciplina. Iniciação à estética, conforme opinião do acadêmico Alfredo Bosi, “é mais do que um manual como o seu título didático sugere tão modestamente”. “O leitor é convidado a entrar fundo nas grandes teorias clássicas e modernas que há mais de dois milênios se vêm debruçando sobre os conceitos complexos de beleza e arte”, completou Bosi. De O banquete, de Platão, e a Poética, de Aristóteles, até Crítica do juízo, de Kant, e a Estética, de Hegel, passando por Arte escolástica e a intuição criadora em arte e poesia, de Maritain, o escritor reflete sobre as correntes filosóficas essenciais da estética e suas variadas manifestações na literatura, teatro, pintura, música, arquitetura e escultura. Mostrando-se sempre muito autêntico e conhecedor profundo do assunto, Suassuna escreveu: “Alguns dos pensadores que me ajudaram a ver o mundo com meus olhos (…) são astros sagrados da primeira grandeza da filosofia de todos os tempos. Às vezes, tenho o atrevimento de discordar de suas idéias(…)”.

Jornal do Brasil / Data: 19/2/2005
Pedra de Suassuna

Romance d’a Pedra do Reino encabeça a reedição das obras do escritor e dramaturgo paraibano

Paulo Bentancur Haja fôlego! Mas ao leitor não tem faltado quando ao autor não falta. E é o que sobra no romance síntese de nossa mitologia nacional: resumida e simpaticamente chamado de A pedra do reino. Em se tratando de um monumento, impressiona que mais de três décadas (a primeira edição saiu em 1971) não lhe deram fama de ilegível – até porque o estilo de Ariano Suassuna (João Pessoa, PB, 1927) passa longe de qualquer dificuldade; o desafio que ele nos lança e acompanhar a febril imaginação, a ação quase carnavalesca de um cenário que ele recupera desde as raízes mais remotas que fizeram não só nossa brasilidade mas a fizeram antes de tais raízes serem transportadas para cá em caravelas. O quilométrico romance põe em movimento, a partir de uma cela onde um prisioneiro, Dom Pedro Dinis Quaderna, observa a vila na qual está cativo e seus murmúrios milenares, seus santos, seus guerreiros, todos à sombra impossível de um sol escaldante. Estamos no começo de uma impressionante saga de pés-no-chão rodeados de transcendências, mescla do mais deslavado folhetim, passando pela irresistível natureza picaresca e chegando à gravidade profunda que contém o gênero épico. O sertão que se distende ante Suassuna é uma espécie de anti-Vidas secas. Naquele, o inferno se constrói pela desertificação, alimentado pela migalha de nem haver esperanças, nem mesmo linguagem, numa quase pantomima do socorro que não chega ao luxo do desespero. Agora, em A pedra do reino, é o contrário. O sol lá está, acima, reinando, com suas fagulhas e sua luz ameaçadora. Porém, cá embaixo, os homens são inumeráveis, as cenas a que se entregam são cruentas de fato, miraculosas outras. Há emboscadas, há degolas, há assombrações, há reinos, há castelos, há miragens, há figuras que mais pertencem ao sonho que à vigília. E o sertão narrado é tão fértil quanto um mar no qual a vida brotou. Condenado para pagar pelos crimes da poderosa família, Quaderna, que se diz verdadeiro Rei e Profeta, arruinado, não dispõe de meios para se defender. Apesar de seus méritos de ”Poeta, Astrólogo e Decifrador”, e apesar da nobre estirpe de onde seu sangue provém, ”da Pedra do Reino”. É ele a única testemunha de bárbaros e fantásticos acontecimentos. Ninguém pode depor em seu favor. Suassuna levou doze anos escrevendo o livro. Nesta 5ª edição (é pouco, comercialmente falando, para tal proeza literária em tanto tempo de circulação) o texto foi alterado, passagens cortadas, outras acrescidas, outras reescritas. O que não mudou (nem deixou o livro datado, o que é um feito) é a linha do fantástico-maravilhoso a que ele se filia talvez porque nesse caso o autor não tenha seguido nenhum modismo. Seu tema é legítimo e se o fizesse hoje, seria nesse cenário de fantasmagorias e simbolismos que infestam a região tanto geográfica quanto histórica que o artista estuda e reproduz. Eis a especialidade de Ariano Suassuna, traduzir, não a si mesmo nem a suas obsessões, vício de muitos cabotinos que julgam sua arte a de todos, mas o contrário, traduzir a arte de todos para si mesmo, com tal ordem e riqueza que põe a si mesmo nela e os põe em seu universo particular, realizando o difícil, quase impossível, encontro entre artista rigoroso e gente comum do povo. Alinha os temas, as imagens, classifica-os, vindo desde a mais remota antiguidade, e sua leis poéticas, até manifestações populares da contemporaneidade. Iniciação à estética foi nascendo aos poucos, a partir de aulas que Ariano dava a seus alunos da cadeira de Estética no Centro de Filosofia e Ciência Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Estávamos em 1956 e o professor anotava caprichosamente cada ponto debatido em aula: Platão; Aristóteles; Plotino; Kant; Hegel; as categorias da beleza; arte gratuita e arte participante; ofício, técnica e forma na arte; hierarquia e classificação; e todos os gêneros, da arquitetura, passando pela música, às danças e espetáculos. Isso sem esquecer as naturezas da estética, a filosófica, a empirista, a psicológica, a historicista, a sociológica e a fenomenológica. Tal conjunto se nos apresenta árido, visto de fora. Porém, síntese afiada e simultaneamente palatável das anotações do professor, que as reuniu durante dezessete anos (a primeira edição saiu em 1973), Iniciação à estética é mais que uma iniciação. Um curso completo e único no gênero feito por um escritor-pensador do naipe de Suassuna. Aliás, podemos chamá-lo de autor? Devido a seus esforços incalculáveis para recivilizar-nos com nosso próprio passado e considerando que ele transita entre a ficção, a comediografia (Auto da Compadecida, 1955) e o ensaísmo, Ariano Suassuna, mais que representar uma cultura, constitui-se nela.

Carta Capital / Data: 2/2/2005
A comédia humana sertaneja

Fora de catálogo há duas décadas, A Pedra do Reino é a peça de resistência do grande romance prometido por Ariano Suassuna

Por Miguel Sanches Neto Mais conhecido como dramaturgo, por sucessos como O Auto da Compadecida (1955), alguns adaptados para a tevê, Ariano Suassuna (1927) é também poeta e principalmente romancista. Essas suas outras faces ficaram um pouco na sombra pelo fato de sua produção ter tido vida editorial restrita, por desejo do próprio autor. Figura das mais festejadas do País, Ariano participou de forma apaixonada dos debates culturais brasileiros, vestindo vários papéis: escritor, professor, articulista, conferencista (com suas aulas-espetáculo) e representante do poder público (secretário de Cultura de Pernambuco no governo de Miguel Arraes), tornando-se verdadeiro símbolo de uma postura nacionalista que, apesar dos que insistem em defini-la como xenófoba, está aberta para a influência estrangeira – não para qualquer tipo de influência, é claro, mas para aquelas a que estamos predestinados. Personalidade nacional, homenageado no carnaval de 2002 pela Império Serrano, que o tomou como tema (‘Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino – Ariano Suassuna’), este paraibano radicado no Recife está longe de ser um mero autor de livros. Ele busca uma obra maior, única, que conjugue todas as suas facetas, fazendo a síntese de um país-mundo visto a partir dos sertões nordestinos. O poeta, o dramaturgo, o pesquisador, o professor e o homem público são partes de uma identidade maior, a do ficcionista. Sintomaticamente, é no monumental Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta (1971) que ele se julga mais plenamente representado. Apesar das setecentas e tantas páginas desse relato composto de poemas, folhetos de cordel, debates filosóficos, discussões genealógicas, definições literárias e muitas histórias misturadamente sertanejas, Ariano não dá por terminado o painel espetacular. Desde 1981, ele vem escrevendo um grande livro, em vários volumes, que reunirá toda a sua produção, dos poemas às gravuras, incluindo boa parte do que já foi publicado. Este projeto inicial está sendo alterado com a quinta edição de A Pedra do Reino (José Olympio, 2004), obra que ficou fora de catálogo por mais de duas décadas. Ela seria incorporada ao romanção, cujo título é mantido em segredo e cujas previsões de término vêm sendo sistematicamente frustradas por Ariano, que não demonstra nenhuma pressa. Agora, enquanto espera, o leitor pode deliciar-se com este episódio que funciona como tronco da obra em andamento, que promete ser algo como uma Comédia Humana Sertaneja. Lendo A Pedra do Reino, compreende-se o desejo de reorganizar as partes já existentes e de complementá-las. Tudo o que Ariano editou até agora (teatro, poesia e romance) são fragmentos interligados, antecipações desta nova obra, ainda inconclusa. Em A Pedra do Reino, ele subverte o conceito tradicional de romance, construindo uma narrativa incompleta e aberta, em que os episódios se sucedem ao sabor das divagações do narrador, Dom Pedro Dinis Quaderna, que empreende uma onírica epopéia sertaneja, dando-nos pedaços de acontecimentos e deixando grandes vazios. O narrador se apresenta, em 9 de outubro de 1938, detido na cadeia de Taperoá, no Sertão dos Cariris Velhos da Paraíba do Norte. Está preso e faz de sua narração a própria peça jurídica de Apelação, mas dirigindo-se a um público literário (‘nobres Senhores e belas Damas’). Escrever é assim livrar-se de um processo ou assumir a responsabilidade nos acontecimentos fanáticos e sanguinolentos, acontecidos na véspera de Pentecostes de 1930, quando surge a reencarnação farsesca de seu primo e sobrinho Dom Sinésio Sebastião, O Alumioso, o Rapaz-do-Cavalo-Branco, marcando o centenário dos acontecimentos trágicos do Império da Pedra do Reino, quando seus antepassados criaram um território bárbaro e fanático em torno das imaginárias torres de pedra de um castelo encantado, degolando gente e animais no desejo místico de desfazer o encanto. Envolvido numa trama de herança e sangue, Sinésio foi morto misteriosamente, depois de ter sido raptado. Seu pai também fora assassinado num quarto-torre e não há pistas do assassino. As dúvidas recaem sobre o filho preterido, Arésio, e o próprio Quaderna, tanto quanto sobre os inimigos do velho fazendeiro que havia incorporado o papel de Rei do Sertão. A volta do filho morto (cover de Dom Sebastião) e o enigma da morte do pai são os dois principais núcleos dramáticos do livro, mas a narrativa cresce barrocamente em vários sentidos. O protagonista é o próprio Quaderna, com suas desmedidas pretensões literárias. Com uma formação bipolarizada, recebendo de um lado a influência dos elementos universais de uma cultura fidalga (representada por um de seus preceptores, Samuel) e de outro a dos negros e tapuias (representados por Clemente), Quaderna faz a junção destes dois padrões, o erudito e o popular, e figura como fruto castanho de tais correntes – é assim que ele se afirma como um Monarquista de Esquerda, cifrando sua latitude ambígua. Por habitar a fronteira, ele se habilita como herdeiro de uma voz nacional, sentindo-se destinado a representar a genialidade da pátria em uma obra-chave, mistura de poema (a forma eleita por Samuel) e ensaio sociológico (a de Clemente), que ele intui ser viável unicamente no formato de um romance que contemple os demais gêneros. Quaderna tem essa dupla destinação, a aristocrática e a popular, mas depara-se com um problema. No patamar sociológico e realista de Clemente, o povo e a realidade são pouco propensos às mistificações necessárias para a grande arte. Ele se vale então dos enobrecimentos próprios da gramática aristocrática e passa a usá-la para elevar heroicamente os acontecimentos vividos por sua gente. Lançando mão do ‘estilo régio’, dá foros universais e mitológicos a acontecimentos banais, vendo tudo sempre com maiúscula, num desejo de transcendência simbólica. Descendendo de dois ramos sertanejos de heróis que resistiram ao poder central, Quaderna une visões contraditórias – seja da cultura, da política, da história, seja da religião. Tudo tem a medida de seu sonho de grandeza, o que dá ao livro momentos de descompasso entre o imaginado e o real. Se rimos com as manias de grandeza de Quaderna, também percebemos a força de suas convicções tresloucadas. Ele apenas propõe respostas ensandecidas a questões-chave da problemática nacional. Para atingir seus objetivos artísticos, de recriar um mundo de nobreza com as peças humanas disponíveis no sertão, Quaderna inventa várias farsas, assumindo uma perspectiva anti-realista, em que se misturam espaços, tempos, personagens e culturas, criando um universo onírico. Assim, a representação ocupa o lugar da realidade e o que era fato histórico retorna como dimensão artística que altera a face do real. Apesar de reconhecer a ridicularia em que se move o personagem, nós nos identificamos com ele, mesmo quando suas atitudes são altamente recrimináveis, aceitando-o como um Macunaíma mais impiedoso. Quaderna, que tem um apurado senso sagrado e satírico, num misto de Rei e Palhaço, termina sua narrativa sem resolver os enigmas que o levaram à prisão. A continuação de seu depoimento dá outro romance (História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana – 1977), que também não resolve os mistérios, exigindo assim o prosseguimento deste work in progress. Tido como romance armorial, A Pedra do Reino traz as marcas deste movimento liderado por Ariano Suassuna – resistência ao processo de descaracterização e vulgarização da cultura brasileira e produção de uma arte erudita baseada em nossas raízes. Embora trabalhando com episódios populares, a sua é uma obra de grande e vasta erudição nacional e estrangeira (principalmente ibérica), que contesta uma visão central de cultura e de política por meio de expedientes narrativos barrocos, investindo nos episódios secundários, sem valorizar um eixo e sem privilegiar o fechamento narrativo, e isso em dois momentos cruciais de centralização do poder no país: a ditadura Vargas (quando se passam as ações) e a militar (quando o livro foi publicado). Para o autor, a forma é uma continuidade de suas idéias.

 

Zero Hora / Data: 29/1/2005
Suassuna reeditado

Romance da Pedra do Reino, clássico da literatura brasileira publicado pelo escritor paraibano Ariano Suassuna no começo dos anos 70, ganha versão ampliada com partes reescritas pelo autor, que acrescentou novas cenas, personagens e descrições

Paulo Bentancur / Crítico literário e escritor1971 não foi um ano fácil. Médici, desde 1969, presidia os anos mais violentos da ditadura instalada no Brasil em 1964. Foi um ano também de importantes lançamentos na literatura brasileira. Para ficar em apenas dois títulos – Incidente em Antares, de Erico Verissimo, e Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta , de Ariano Suassuna. Erico era um autor consagrado e paremos por aí; Suassuna já era reconhecidamente grande diante da crítica, mas não chegava a ser popular – embora tivesse tudo para sê-lo. Aquele romance maçudo (a edição que a José Olympio acaba de colocar no mercado, a quinta, tem 754 páginas) era seu batismo de fogo e com ele é que os leitores iriam ver o que era bom para a tosse. A começar, pelo tamanho, que três décadas depois inacreditavelmente aumentou, já que o autor mexeu no texto, não só reescrevendo passagens como acrescentando cenas e descrições. Apelidado, para facilitar, de Romance da Pedra do Reino, o livro ganhou na folha-de-rosto um gênero carregado de especificidade, ‘romance armorial brasileiro’. O vocábulo armorial, que vem do francês, designa livro de registro de brasões ou qualquer coisa relacionada a brasões. Algo armoriado, por exemplo, é o que possui armas ou brasões aplicados, pintados ou esculpidos. Armas, as conhecemos, de preferência de longe, por sabê-las e a seu poder. Brasões nos soam inofensivos, simples ornatos a formar um conjunto de peças e figuras, sempre com uma arma presente. Um brasão também significa honra e glória. Assim, cuidado também com os brasões. A nova e renovada edição d’ A Pedra do Reino repõe em circulação um clássico que vendeu bem menos do que merecia mas que foi lido em bibliotecas e repassado por várias mãos. As quatro edições que levou para esgotar desde 1971 escoaram com lentidão por diversas causas. Uma, já lembrada, é a maldição do tamanho, hoje em dia charme de consumo. As pessoas desejam levar para casa um monumento. Em regra, monumento só no tamanho. Pois aproveitem, este é monumento mesmo, pedra, marco na literatura, desde aquele tempo em que Médici justificava o desaparecimento de leitores e não-leitores. O Brasil arcaico, o Brasil eterno fixado desde suas raízes vindas da Europa, o Brasil com suas obsessões através de um homem sob julgamento, Dom Pedro Dinis Quaderna, que parece aprisionado mais por visões, sonhos, do que preso em realidade, o que também é fato. Mas alimentado pela erudita pesquisa, Ariano Suassuna povoa sua ficção de referências a uma cultura milenar que, febricitante, perturba seu herói e colore a região retratada com matizes nunca dantes vistos em nossas letras. Têm razão alguns críticos que puseram, lado a lado, em ambição criativa, Grande Sertão – Veredas, de Guimarães Rosa, e A Pedra do Reino. A enorme diferença é que Rosa inventou uma fala que é mescla de vários falares reais e outros possíveis. E Suassuna, não menos criativo, utilizou-se de outra perspectiva, buscando a pureza de uma língua quase perdida, registrando-a na gênese de sua modernização porém com elementos freqüentes do passado. Sobretudo – e é aí que entra o armorial – o imaginário de fôlego incansável compõem à nossa frente epopéias, paixões, dramas tão cruéis quanto encantatórios. O que é lenda vira realidade e se alimenta de um narrar que bebe de um nascedouro onde a farsa, a tragédia, o grotesco, o épico e o lírico se somam e dão num… romance? A Pedra do Reino ultrapassou o gênero. E sem precisar apelar a invencionices. Manual de estética Autor de um clássico do teatro brasileiro, O Auto da Compadecida (1955), o paraibano Ariano Villar Suassuna, hoje com 77 anos e radicado em Recife desde 1942, é mais que um artista, é um pensador. E pensador que não cria ou simplesmente mistura ou repete sistemas extraídos de uma capacidade rara para elucubrações, mas que os pesquisa e tudo que produz parte dessa pesquisa exaustiva. Típica, ressalte-se, de um folclorista que aos costumes preferiu o mais remoto de nossas origens – as armas e os brasões que nos assinalam, assassinam e nos salvam, conforme a ocasião. Escreveu em 1956, para seus alunos da cadeira de Estética, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco, a quem distribuiu cópias mimeografadas, um manual de estética, semente para Iniciação à Estética, livro que o autor terminaria 17 anos depois e que publicaria em 1975 por uma editora universitária. A sexta edição que a José Olympio oferece agora, tem sabor de novidade. Como se fosse o contraponto teórico à prática executada até o limite em A Pedra do Reino. E não apenas no que diz respeito a seu romance, mas qualquer romance, e demais gêneros da literatura. E não só a ela, mas às artes em geral – a escultura, a arquitetura, a pintura, a música, a mímica, o teatro (quantos, ao falarem deste, esqueceriam a mímica ou a deixariam em segundo plano?) e, mais extensamente, as artes de espetáculo. Não porque Suassuna seja do País do Carnaval. Ao contrário, lendo sua Iniciação (modestamente intitulada, conforme Alfredo Bosi), deparamo-nos com um mestre que ao acúmulo de conhecimento, humanista tornado homem-mundo, os transmite tão cristalinamente que aquilo que a História das Idéias pomposamente trata ele o faz como quem trata do cotidiano. Ariano Suassuna, definitivamente, não é ‘apenas’ o autor de um romance fundamental, A Pedra do Reino, à disposição de todos nesta nova e caprichada edição. Nem o didático expositor de idéias de 2 mil anos sobre arte, em seu Iniciação à Estética, numa sexta edição saída ao mesmo tempo que o romance. Ele tornou-se, depois disso (e já se vão cerca de três décadas), mais do que uma referência. Alguém que superou a condição de autor e tornou-se, sim, uma espécie de fonte.

Correio do Povo / Data: 20/1/2005
Suassuna volta em grandes obras

O escritor pernambucano representa a cultura nordestina e as raízes brasileiras na literatura

O escritor Ariano Suassuna está sendo relançado pela José Olympo editora, nos livros Iniciação à estética e Romance d’A pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta . Embora a peça O auto da compadecida seja o trabalho mais famoso e prestigiado do escritor pernambucano, a sua maior obra-prima é o épico A pedra do reino . Definido pelo autor como um ‘romance armorial-popular brasileiro’, o livro foi responsável por desbravar novos caminhos para a literatura nacional. O romance, que começou a ser escrito em 1958 e só foi concluído em 1970, combinou de forma inédita dois gêneros opostos de discurso – o erudito e o popular. O livro é apresentado como um romance autobiográfico narrado por Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna. As desventuras de Quaderna e a trágica história de sua família na cidade de São José do Belmonte, no interior de Pernambuco, são ponto de partida para Suassuna promover as suas misturas – o rico com o pobre, a arte com o cotidiano, a ingenuidade com a malícia, a realidade com a fantasia. Para compor a obra, o escritor se baseou nos principais elementos da cultura popular nordestina. Ariano Suassuna é o caso raro de um autor de ficção que também conseguiu se manter relevante como teórico e crítico. Renomado dramaturgo e romancista, além de pesquisador da cultura popular, Suassunaatuou muito tempo como professor universitário. Foi baseado em sua experiência na cadeira de Estética no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco que surgiu Iniciação à estética , tido como o mais importante livro sobre o assunto já editado no Brasil. O trabalho surgiu da necessidade de Suassuna em sintetizar todas as reflexões realizadas durante os anos em que lecionou a disciplina. Unindo seu talento em lidar com as palavras e seu conhecimento sobre o tema, o escritor criou uma obra que aborda todas as grandes teorias – clássicas e modernas – que giram em torno do conceito de beleza e de arte. Didático e original, o livro foi logo adotado por diversas faculdades do país e passou a ser reconhecido no meio acadêmico como parte de uma biografia fundamental para as várias ramificações da Filosofia. Ariano Suassuna é advogado, professor, teatrólogo e romancista. Nasceu na cidade de Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa, em Pernambuco. Em agosto de 1989, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Autor de várias obras, é defensor da cultura popular, das raízes brasileiras, especialmente a nordestina.

 

Sobre o autor:
Suassuna, Ariano

É dramaturgo, romancista, poeta, ensaísta, defensor da cultura popular, das raízes brasileiras e, especialmente, nordestina. Nasceu na cidade de Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa, na Paraíba, no dia 16 de junho de 1927. Escreveu, aos vinte anos, sua primeira peça, ‘Uma mulher vestida de sol’. Foi membro fundador do Conselho Federal de Cultura, do qual fez parte de 1967 a 1973, e do Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, no período de 1968 a 1972. No dia 18 de outubro de 1970, lançou o Movimento Armorial, com o concerto ‘Três séculos de música nordestina: do barroco ao armorial’, na Igreja de São Pedro dos Clérigos, e uma exposição de gravura, pintura e escultura. De 1975 a 1978 foi Secretário de Educação e Cultura do Recife, retornando ao cargo em 2007. Doutorou-se em História pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1976. Em agosto de 1989, foi eleito por aclamação para a Academia Brasileira de Letras.

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