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GuerReiro Novo

Lembro-me de, em 2005, quando a [Escola] Picolino comemorava não me lembro o quê, ter assistido as 04 ultimas grandes montagens da sua companhia até então: “Panos”, “Batuque”, “cenascotidianas@circ.pic” e “GuerReiro”. Assisti a remontagem deste último nesta quinta (pré-estreia) e sexta (estreia) [25 e 26.10.2012, respectivamente]. Lá naquele ano, recordo-me de ter ficado assombrado em como um espetáculo de Circo – na época estava ainda começando minha história neste universo – podia ser tão “cabeção”, tão intelectual com críticas irônicas e piadas internas de muito bom gosto. Oras, era sobre Glauber Rocha e o cinema novo e, agora sei, sobre o Circo Novo.

Este é um ponto chave sobre este espetáculo e não pode ser vilipendiado: Guerreiro conta a história de Glauber e do Cinema Novo e, ao mesmo tempo, escreve a história tupiniquim daquilo que viria a ser chamado de Circo Novo.

Em 2012 o assombro continua. Começar o espetáculo com “Essa Negra Fulô” do Jorge de Lima mostra o que nos aguarda. “Ó Fulô! Cadê, cadê teu Sinhô que Nosso Senhor nos mandou?” e eis que surge Glauber, em cima de uma perna-de-pau, explicando sua função: vim dirigir!

Bem ao estilo do Circo e Cinema Novo, o espetáculo mistura. Mistura Circo com dança, com música ao vivo, com teatro, com efeitos especiais e projeções de filmes do grande cineasta. Mistura de grandes expoentes: a Cia Picolino, expoente do Circo Novo e Glauber Rocha, ápice e maior nome do Cinema Novo. Que Mistura!

Com uma trilha sonora de altíssima qualidade – e muito bem executada – o espetáculo passa por diversas técnicas clássicas – e nem tanto – do Circo, como a contorção, o malabares, a corda indiana, o tecido, o trapézio de voos, a acrobacia e o quadrante.

Paro, agora, para falar um pouco sobre cada uma delas:

A contorção, para mim, apresenta a questão que mais acho complicada no visual do espetáculo: a enorme quantidade de informações. Ao mesmo tempo em que havia cinco artistas em cima de cinco mesas no picadeiro, havia uma tela de projeção centralizada ao fundo – fixa, como se fosse um cenário –, dois grupos de artistas realizando movimentos numa posição mais alta, os músicos e toda aquela informação que o próprio Circo já traz. É muita coisa ao mesmo tempo.

E então entra alguns “jagunços” montados em monociclos e disparando tiros – os tiros foram mesmo emocionantes, causando palpitação na plateia – e começa a corda indiana que, ao meu ver, foi o número tecnicamente mais sem graça do espetáculo ficando a emoção por conta do contexto geral da cena – e da música. No final, mais tiros e os personagens morrem, dando a deixa para a entrada do número de tecido.

Este é um número bonito. Ao som da Bachiana nº 5 de Villa Lobos – cantado divinamente –, o número surpreende apresentando duas movimentações diferentes no tecido: primeiro ele fixado como se fosse uma rede depois em seu formato mais tradicional. As quedas e posições foram muito bem executadas mesclando momentos de pausa e ação emocionando o público presente.

Aproveito para já ressaltar o figurino que compôs muito bem o espetáculo, apresentando personagens sem perder a estética dos filmes de Glauber e sem comprometer a performance dos artistas. Este foi outro ponto muito positivo do espetáculo.

Também aproveito para criticar a iluminação, a meu ver, o ponto mais frágil. Embora não comprometa, a iluminação também não chega a acrescentar e num espetáculo onde tudo está forte isso acaba sendo um ponto negativo.

Ao final do número, os artistas carregam o Glauber e saem e acontece pela primeira vez uma situação que é sempre complicada para o Circo: a troca, entrada e saída, de itens de cena. Na estética do Circo Tradicional isso é resolvido normalmente pelos palhaços, no Circo Novo, muitas estratégias têm sido utilizadas, umas com sucesso, outras não. Neste espetáculo acontece exatamente isso, algumas entradas/saídas de aparelho acontecem sem nem você perceber, outras parecem durar uma eternidade.

Depois vem a cena dos malabares introduzida por uma coreografia bem interessante. A cena se baseia numa cena do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, e nesta cena que fica mais clara a correlação entre o que é mostrado ao Vivo e o que é passado na projeção.

Sobre a projeção tenho duas críticas: 01. Acho que o local, ou pelo menos a estrutura em que a tela é colocada deixa a cena “suja”; 02. A parte técnica de se fazer uma projeção ao vivo no meio do espetáculo deixa a desejar, tendo momentos em que visivelmente aparece a o ponteiro do mouse apertando o “play/pause”, sem contar nas trocas de telas/vídeos, todas sem suavidade.

Ao final dos malabares acontece um dos momentos em que o público mais foi ao delírio: a entrada dos “turistas” e dos travestis. E logo após uma das cenas mais interessantes: a Escada de Equilibrio, onde as artistas tiram a roupa se equilibrando numa escada – posta na horizontal, fixada num único ponto no meio – e depois giram (a escada inteira) gerando um “frisson” no público e arrancando aplausos.

Depois vem uma cena cômica, apresentando dois dos principais colegas de Glauber: Antonio Pitanga (um dos seus atores favoritos) e Roque Araujo (cineasta). Um parêntese, na sexta, o verdadeiro Roque Araujo foi assistir ao espetáculo e foi homenageado pela companhia. Merecido!
Depois vem o intervalo e começa a segunda parte do espetáculo, que a meu ver é a melhor.

O espetáculo recomeça com o Arame, que tecnicamente não acrescenta muita coisa, mas achei uma ótima escolha para o público retomar o ritmo depois da pausa.

Na sequência vêm os dois números mais impactantes: o trapézio de voos, que por si mesmo, é um número de grande emoção e que atrai os olhares do público; e a acrobacia que, a meu ver, é disparado o melhor número do espetáculo.

O “voos”, embora tecnicamente não acrescente muita coisa, é bom de se ver – sempre é bom ver homens e mulheres voando – e acrescenta uma dose de emoção extra ao espetáculo. Também saliento que em espetáculos do Circo Novo, o trapézio de voos é uma técnica muito pouco utilizada e estar presente neste espetáculo é, para mim, mais um ponto positivo para a companhia. Torço muito para que eles continuem a treinar/pesquisar a técnica para que possamos ver um “voos” cada vez melhor.

A acrobacia, para mim deveria terminar o espetáculo. Tive a curiosidade de olhar a minha volta e vi um público estatelado com olhos fixos, num silêncio quase sem respirar e isso diz muito mais sobre o número que qualquer outra coisa que eu possa escrever.

O espetáculo se encerra com o número do quadrante. A disposição do aparelho é interessante, mas não considero a movimentação das mais inspiradas criadas pela companhia Picolino. Algumas passagens me pareceram “truncadas”, sem fluidez e algumas imagens “sem inspiração”.

Por ultimo, deixo para falar sobre o ator que faz o Glauber. A escolha da direção é que ele esteja sempre em cima de uma perna-de-pau. Esta escolha me pareceu ser uma faca de dois gumes: se por um lado, deu o devido destaque a personagem, por outro, deixou o ator pouco a vontade em suas movimentações. Em dois momentos, ele cita o texto escorado no mastro que sustenta a lona. Oras, Glauber Rocha escorado? Mesmo que deixemos de lado a parte técnica de um ator falar naquela posição, a parte simbólica de ter o Glauber Rocha escorado para fazer sua função é sem dúvida passível de crítica.

No geral, o espetáculo conta com 23 artistas em cena, 07 músicos e toda uma equipe fora de cena (contei mais 07), o que já demonstra sua grandiosidade. Ainda, considero um dos espetáculos mais arrebatadores que assisti nos últimos anos e recomendo intensamente a todos que puderem assistir.

Hale Rey!

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