Palhaço Jogando na Rua – Aproximações Praxiológicas

Este breve artigo visa tratar de algumas pontes possíveis entre a minha experiência prática em palhaçaria de rua – no exercício da técnica do Palhaço Itinerante – e elementos presentes no livro “Juegos, Deporte e Sociedades – Léxico de Praxiología Motriz“, de Pierre Parlebas¹.

As reflexões a serem aqui desenvolvidas iniciaram-se durante a elaboração da dissertação de mestrado “Olha o Palhaço no Meio da Rua!” – O Palhaço Itinerante e o Espaço Público como Território de Jogo Poético (IA/UNICAMP, 2009). No decorrer deste estudo, busquei bases conceituais que me permitissem aprofundar minhas reflexões acerca do jogo detectado como estrutura fundamental das improvisações que realizava como palhaço em espaços públicos, principalmente de Campinas/SP, mas também de outras grandes cidades como São Paulo/SP, Rio de Janeiro/RJ e Florianópolis/SC. Infelizmente não pude encontrar bibliografia que tratasse deste tema pelo prisma da arte circense ou de palhaçaria de rua. Por este motivo e pela pertinência de suas reflexões, cheguei ao citado Léxico de Parlebas.

Porém, antes que inicie minhas considerações a respeito da presença de elementos elencados por Parlebas em minha atuação artística no âmbito da referida pesquisa, creio ser pertinente esclarecer a que me refiro quando trato da técnica que atribuo ao Palhaço Itinerante.

Tal técnica compreenderá práticas de palhaçaria realizadas no espaço público, originadas na improvisação – principalmente cômica, mas não só – em cenas surgidas a partir da interação entre o ator-palhaço, os elementos fixos e móveis constituintes do espaço (arquitetura, mobiliário urbano, veículos, etc.), e os demais sujeitos ali presentes.

Minha opção aqui será abordar a atuação do palhaço itinerante em sua dinâmica processual, que se dá a partir da constituição de um espaço de jogo poético no qual o palhaço é, como se verá, apenas um dos jogadores. É justamente neste processo – de construção do espaço compartilhado de jogo –, que minha prática artística pôde encontrar pontos de consonância com as teorias de Parlebas.

Nesse sentido, Parlebas afirma, citando Jacques Henriot (323), que a constituição do ‘espaço de jogo’ inicia-se na construção de uma dinâmica de jogo entre o jogador e o próprio jogo. Essa observação será muito pertinente ao palhaço itinerante, já que, anteriormente ao trânsito que realiza pela cidade, o ator buscará colocar-se em uma postura (pensamento em ação) singular em relação à realidade tempo-espacial que o cerca – o que pode receber o nome de ‘lógica do palhaço’ – estabelecendo assim esta primeira dinâmica de jogo.

A partir de então o palhaço estará pronto à construção da cena, ou seja, de um espaço de jogo poético que se estabeleça com outros jogadores, o público. Quando aqui coloco o público como jogador é por acreditar que este é parte constituinte do jogo poético-cênico: seja simplesmente pelo seu olhar, pelo riso ou por quaisquer outras ações relacionadas ou não à situação dramática, influencia diretamente no percurso do jogo que se estabelecerá.

E o encontro do olhar do palhaço itinerante e dos outros jogadores será também o principal meio de estabelecimento do que Parlebas chama de contrato lúdico, ou seja, um contrato declarado ou tácito que cria a possibilidade de construção do espaço de jogo entre os jogadores. Através do olhar, o palhaço itinerante convida o público passante à construção compartilhada de um espaço-tempo mágico, de regras particulares e acordadas no decorrer da apresentação cênica, pois improvisada.

Tais regras serão oriundas, assim como o decorrer do jogo, da rede de comunicações motrizes, ou seja, da rede de comunicações expressas pela expressão motora – ações, gestos, movimentos – estabelecidas entre os jogadores no espaço de jogo. É antes pela ação do que pela palavra que o palhaço proporá, por exemplo, que não se deva pisar em uma poça d’água “por conta dos tubarões”. Desta forma, cada jogador analisa as ações dos demais e propõe, através de sua ação, a continuidade ou não do jogo estabelecido, assim como o seu percurso.

É no terreno da comunicação motriz que Parlebas situa a comunicação artística, porém, o autor considera que a expressão artística demanda outra categoria de comunicação motriz, a metacomunicação, ou seja, a comunicação que se faz em um terreno mais próximo da sugestão do que da reprodução de códigos fechados pré-estabelecidos – assim como aquela comunicação que nos faz prever para que lado o atacante fará sua finta em meio a um jogo de futebol.

A potência poética do palhaço itinerante virá manifesta justamente por esta relação dita metacomunicacional (ou seja, tácita, infra-perceptível) que o ator estabelece com o público a partir da construção de um espaço de jogo calcado na relação com o espaço, seus elementos e os outros jogadores. Isto cria lógicas, ou ‘regras’ singulares de uso poético destes elementos, lógicas próprias, mas não individuais já que construídas pelas relações metacomunicacionalmente estabelecidas entre os jogadores da cena improvisada.

Anteriormente, chamei a atenção ao fato de que as regras dos jogos estabelecidos pelo palhaço itinerante são construídas durante suas apresentações. Isso posto, é interessante observarmos que, em geral, essas regras não são facilmente apontáveis, constituindo o que Parlebas chamará de metarregras, ou seja, acordos igualmente tácitos e poeticamente pertinentes, que asseguram a continuidade da magia do ‘mundo’ criado e de sua capacidade de metamorfose ao sabor do interesse.

Na medida em que as metarregras não constituem um regimento que limite a priori a atuação em jogo, estas se farão pertinentes apenas durante o tempo em que forem renovadas em ação pelos jogadores. Isso fará com que tanto a lógica interna quanto as relações entre tais jogadores sejam extremamente maleáveis ao desejo destes na manutenção do jogo a partir de suas idiossincrasias.

Através deste breve relato, procurei fazer conhecer algumas possibilidades de aprofundamento da compreensão da atuação do palhaço itinerante a partir de um pensamento de seu fazer artístico pelas teorias presentes na Praxiologia Motriz, de Pierre Parlebas. Creio que a ponte de conhecimentos cênicos e praxiológicos pode ser muito benéfica ao aprofundamento dos estudos de ambas as faculdades e recomendo a leitura de minha dissertação de mestrado (presente na íntegra no Banco de Teses do site da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e, em breve, também no site do Circonteúdo).


1. PARLEBAS, Pierre. Juegos, Deporte e Sociedade – Léxico de Praxiología Motriz. Trad. Fernando Gonzáles del Campo Román. Barcelona: Editorial Paidotribo, 2001.


Bibliografia
HENRIOT, Jacques. Le jeu. PUF, colección SUP. París, 1969.
PARLEBAS, Pierre. Juegos, Deporte e Sociedade – Léxico de Praxiología Motriz. Trad. Fernando Gonzáles del Campo Román. Barcelona: Editorial Paidotribo, 2001.


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