O circo social e a procissão dos vaga-lumes

A primeira ideia de circo social que tenho noticias, remonta a Roma antiga, no programa de governo, Pão e Circo.  Os conflitos sociais eram sublimados e ressignificados no centro da arena, onde cuspidores de fogo, iluminavam duelos de gladiadores e leões, que serviam para exemplificar a força do imperador e castrar os desejos de insurgência do povo.
No meio da plebe, alguns artistas circenses, percebendo que aumentava a violência, que aquele circo não era lá muito católico e que aquilo tudo ainda poderia gerar uma caça as bruxas, migram para os mercados e praças públicas, se negando às artes do império e porque certamente não queriam ver o circo (outro) pegar fogo.
A segunda ideia de circo social, por mim vivenciada, remonta a década de [19]90, nas ruas e marquises da zona sul do Rio de Janeiro, período republicano de promulgação do estatuto da criança e do adolescente.
No centro da arena, empurrados ainda pelo impacto do aborto social do ventre livre, os meninos e meninas de rua (na verdade, sem ruas), os gladiadores, agora contratados como guardiões do governo e os leões, agora recrutados pelo poder paralelo.
Os meninos e meninas, lumes que vagam de noite e de dia, piscavam nas calçadas, nas areias e nas águas de Odoyá. Quando apagados dormiam, quando acesos queimavam e corriam, para escapar dos exterminadores de pirilampos.
Do alto dos camarotes do coliseu da atlântica, a elite carioca e alguns governantes, separados por grades de proteção, observam duelos nas pedrinhas portuguesas, enquanto seus criados jogavam creolina para fazer a lavagem de bom fim nas calçadas.
Por questões éticas, étnicas e estéticas, os conteúdos basilares do circo social, vão sendo construídos a partir de diálogos com os conhecimentos e protagonismo dos meninos e meninas sem ruas, se entrelaçando freirianamente com os conceitos circenses da Intrépida Trupe e de educação popular do Se Essa Rua Fosse Minha.
Nesta perspectiva, os sentidos circenses de educação popular, ou o que passamos a chamar de circo social, começam a ser desenhados com base nos saberes corporais que estes meninos e meninas apreendiam no universo ludocircense da capoeira e nos saberes ancestrais, com os quais resgatavam nas rodas os valores de circularidades da expropriada vivência de territorialidade africana.
Esta abordagem circense mantinha o rigor técnico e o encantamento que inspiraram muitas historias de fugas atrás das caravanas, mas, se apresentava como um circo (circulo) de retornos, reencontros, e fortalecimento do binômio corporeidade/identidades na perspectiva de reencantamento das “infâncias perdidas” nos desertos das cidades.
A educação então ganha centralidade na tríade circo, pão e educação. Ou “A arte de alimentar o desejo de aprender”. Entendendo assim que Educação, como o ato de fazer amoroso, é relacional, dialógico. Só se faz COM O OUTRO. NO OUTRO, é intervenção com riscos de estupro cultural!
A terceira idéia de circo social acontece quando alguns artistas de países vizinhos fazendo oficinas de reciclagem na Escola Nacional de Circo vão para os sinais jogar malabares e passar o chapéu.
Esta prática é rapidamente apreendida pelos meninos e meninas sem ruas, que usando limões depois bolinhas de tênis, fazem girar a ciranda de sobrevivência e criatividades pelas ruas principais das grandes cidades.
Esta experiência saltimbanco de circo social trouxe ares europeus para uma classe média decadente e um novo maravilhamento para uma cidade sitiada. Os meninos e meninas eurocentricamente embranquecidos agradavam gregos, troianos, romanos, gladiadores e os leões (ambos agora milicianos), abrindo sinal verde nos corações e nos elétricos vidros dos carros importados.
Mas, muitos meninos e meninas que não tinham mais equilíbrio emocional para aprender malabarismos e os adultos aliciadores, que não podiam ser seus mecenas, começaram a realizar assaltos durante os semafóricos-espetáculos, com a clara intenção de sujar a cena para poder retomar o esquema de poderes sobre estes sobreviventes da arena.
Assim, quando o sinal vai começando a ficar quente e vermelho, a ala supostamente mais alternativa do coliseu, não querendo se ver refletida no espelho, reivindica direito autoral pelas bolinhas e, sai furtivamente da senzala, como todos aqueles que dizem ter um pé cozinha.
Os meninos então deixam de ser artistas, empretecem novamente, vão sumindo aos poucos da pista, cedendo lugar, para claros e novos artistas. E com a retomada dos Imperadores, eles (os meninos) são torrados como buchas, numa procissão de vaga-lumes, queimados em praças públicas, no brilhante crack/crack das fogueiras de pedrinhas.
A quarta experiência de circo social vai acontecer em todas as escolas publicas do Brasil (como em muitos países da Europa). Aulas de circo, merenda escolar balanceada, livros, computadores, educação de qualidade, para meninos e meninas de todas as cores e idades.
E assim finalmente, todas e cada uma das nossas crianças e jovens cidadãos, ao saírem das escolas, (protegidos pela família, escola, sociedade e estado) com seus direitos de ir e vir garantidos caminharão felizes e faceiros pelas ladrilhadas ruas desde circo brasileiro.
Mas seria este um manifesto pelo circo social? Um chamamento à vergonha nacional, um apelo poético à postura coletiva e a vontade política? Ou apenas utopias de um periférico artista, prosas de um velho encantador de historias Griô ou acordados sonhos de um aprendiz de educador?
Sei não, mas como não sou de circo, melhor não cuspir fogo!

Cesar Marques
Arte educador – Se Essa Rua Fosse Minha
Palavra chaves: Circo social, Educação popular meninos e meninas de rua
Conceito: Circo social. Sentidos circenses de educação. A arte de alimentar o desejo de aprender

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