Maracatu e Circo – Caminhos e Descaminhos

Originado nas celebrações de coroação dos Reis do Congo realizados durante os festejos em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, ainda no Brasil colonial, com a abolição da escravatura os cortejos se desligaram da liturgia católica e assumiram seu lado festivo se introduzindo na maior festa popular profana brasileira – o carnaval. Mantendo-se fiel às religiões afro-brasileiras o Maracatu de Baque Virado, também conhecido como Maracatu Nação, encanta pela pompa de sua corte, e faz vibrar o corpo e o espírito através da sua música e de sua dança. É antes de tudo uma manifestação da resistência dos afro-descendentes diante de todo o processo de repressão, exclusão e preconceito da sociedade.

Nas duas últimas décadas um fenômeno, ainda passível de um estudo mais aprofundado, fez o ritmo contagiante do Maracatu sair do reduto dos terreiros de candomblé e do ciclo carnavalesco para os palcos e festas, atraindo especialmente um público jovem oriundo de famílias de alto poder aquisitivo. É chique aprender a tocar ou dançar maracatu.

Sem apresentar verdades absolutas nem conclusões definitivas, salta aos olhos essa apropriação de algo antes recriminado e tratado como coisa de “preto pobre” e de “Xangô” (termo genérico utilizado em Pernambuco para designar as religiões de matrizes africanas), pela gente “branca” e “rica”. Praticantes e estudiosos dessas manifestações religiosas e culturais questionam e provocam uma salutar discussão: aqueles grupos percussivos que se apresentam executando o ritmo dos maracatus e dançando (muitas vezes com um exagerado tratamento cênico), são MARACATUS?

É inegável que essa aproximação contribuiu para quebrar barreiras sócio-econômicas e, conseqüentemente culturais, mas também é questionável a abrupta transformação que a manifestação vem sofrendo, sobretudo, por alijar desse processo – em grande parte, seus agentes criadores. Longe está manifestado aqui o desejo e/ou o conceito de engessamento cultural, mas a necessidade de que a transformação seja processual e ocorra de dentro pra fora. E não a partir de uma imposição midiática de transformar e padronizar a expressão cultural.

Muitos devem está se perguntando: mas o que isso tem haver com o circo.

Salvo as devidas proporções e respeitando as especificidades de origem e forma, a propagação das habilidades circenses como atividade terapêutica, lúdica e atlética levadas à cena nas grandes cidades têm provocado situações inusitadas – ainda não totalmente assimiladas. Também sobre essa questão não apresento aqui verdades absolutas nem conclusões definitivas.

O mercado de trabalho para os artistas de circo independentes e trupes, a priori, tem se mostrado bastante diversificado – vai desde as apresentações em Circos a exibições em semáforos, passando pelos espetáculos de teatro, programas de TV, festas de crianças, eventos culturais, escolas, etc. Ao mesmo tempo em que o mercado “se abre” em possibilidades, especialmente no nordeste, a valorização da arte parece não seguir no mesmo rumo. Por se ver mais esses artistas “circulando” poder-se-ia respeitar e consumir mais a manifestação.

É importante registrar que os artistas forjados nas escolas profissionalizantes de circo, ou oriundos de escolas e projetos de circo-social, geralmente possuem uma consciência histórica e política da arte circense e de seu papel ao longo da história. Bem como atuam de forma responsável e conseqüente, valorizando a arte e integrando-se às discussões mais amplas da cadeia produtiva do circo.

Falo das inúmeras academias que têm introduzido entre suas técnicas inovadoras para perder peso, ganhar agilidade ou se alongar, o exercício de habilidades circenses. Falo de alguns projetos que se utilizam de uma mão de obra barata para repassar números circenses. Falo das crianças e adolescentes que macaqueiam malabaristas e contorcionistas em semáforos, arriscando a vida, prejudicando a saúde, num mero esforço de garantir a grana para a sobrevivência, driblando a perversa distribuição de renda em nosso País. Falo de pessoas e artistas de outras linguagens que se utilizam de forma irresponsável do circo, se assumindo como artistas circenses. Basta um nariz vermelho para se tornar palhaço ou montar em uma perna de pau para ser equilibrista.

Essa pseudo popularização da arte nem sempre chega de forma benéfica aos artistas.

Os circos itinerantes, por sua vez, permanecem circundando os grandes centros, armados em terrenos muitas vezes precários – não há espaço para o circo “entrar” nas cidades. E os muitos artistas (nem sempre tão artistas assim), “se vendem” por qualquer coisa. Surgem os diminutivos/pejorativos “palhacinhos”, “numerozinhos”, “truquezinhos” – alguns produtores nos usam pra “encher lingüiça” nas festas populares – para entreter o público até que o prato principal seja servido.

Com o aumento de grupos de perna de pau (que se equilibram cabaleantes sobre as pernas), de malabaristas (que acham uma grande façanha manipular três bolinhas) ou acrobatas que mais parecem bodes saltitantes, que se apresentam a cachês insignificantes, as verdadeiras trupes, grupos e artistas independentes são paulatinamente alijados ou forçados a atuar pelos mesmos custos e condições.

São maracatus os grupos percussivos que se manifestam sem nenhuma relação direta com as origens dos maracatus nação? São circenses os garotos que se espremem entre carros nas ruas para ganhar grana, os que ficam horas segurando placas em frente as lojas ou os que jogam duas bolinhas para o ar em festas de aniversário e raves?

De mangueiras não surgem cajus!

Recife, 06 de junho de 2010.

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