Curando as feridas ou a remissão dos pecados

Era o ano de 1989.
O espaço: Oficina Cultural Oswald de Andrade.
O curso: “Técnicas Circenses”, integradas a um projeto teatral.
Lá estava eu, pela primeira vez, me deparando com a arte do circo, ajudando a escrever uma história que, hoje, é objeto de pesquisa.
De lá pulei, direto para o Circo Escola Picadeiro de São Paulo.
Fiz parte de uma das primeiras turmas formadas pela Escola.
Um tempo em que o aprendizado vinha direto da fonte. Tínhamos o precioso contato com os Mestres do Circo. Conhecíamos as histórias fantásticas, aprendíamos a construir e cuidar dos nossos aparelhos.
Em dia de tempestade estávamos todos lá, uns segurando, firme, as amarras, outros levantando ou baixando os panos de roda e outros, ainda, trancados no banheiro, escondendo o choro.
Valia tudo! Até jogar ovos por sobre os trailers, para Santa Clara acalmar as forças da natureza. Mandinga da boa!
Quando a tempestade passava e tudo ficava bem, íamos, todos, comemorar voando no trapézio.
Mas se, por ventura, nada ficasse bem, íamos, todos, limpar a sujeira, recolher os pedaços e ajudar a reconstruir o sonho de todos nós.
Às vezes penso que, na época, nem tínhamos idéia da importância daquilo que estávamos vivenciando.
Naquele tempo, o termo “técnicas circenses” abrangia todas as modalidades.
Tínhamos aquecimento e preparação corporal para saltos e acrobacias e aparelhos como pernas de pau, monociclos, chicotes e claves de malabarismos, bem ao alcance de nossas mãos.
E o mais importante: tínhamos os Mestres, a nossa disposição, para nos orientar segundo o nosso interesse e, só, segundo o nosso interesse.
Havia, também, aéreos, claro, mas estes, apenas após um bom condicionamento físico. A regra era clara: o princípio é a cambalhotinha!
Isso me faz pensar na ingenuidade dos cursos de trapézio e tecido, para iniciantes.
A vida no circo começava assim, íamos adquirindo força, equilíbrio e vencendo os medos, gradativamente, cada qual ao seu tempo, exceto quando um Mestre resolvia nos fazer repetir, exatamente, o truque que mais nos causava pavor, e nos fazia subir, novamente, no trapézio, após uma queda… ui!
Ninguém discutia, apenas subia e o medo passava.
Após anos de treinamento, vejam bem, “anos”… e já trabalhando na área, como todos dessa época, fui transmitir os saberes circenses.
Tive muitos alunos: crianças, adolescentes e adultos. Todos encantados com a magia do circo.
Como aconteceu depois, segundo a história nos conta, esses alunos foram, também, transmitir os seus saberes.
Não os saberes dos Mestres, mas os meus, pois que não haviam tido contato com a fonte.
E os alunos deles, foram transmitir também seus saberes, não os saberes do Mestres, ou os meus saberes, mas os saberes deles próprios. E desta forma, o circo invadiu todos os espaços cabíveis à arte.
Durante anos convivi com essa espécie de culpa, sem ter, porque, sim, eu havia transmitido o melhor do que havia aprendido, mas não havia tipo tempo, suficiente, com os novos aprendizes, para ensinar o amor e o respeito, que eu aprendi vivendo e ouvindo as histórias fantásticas.
Porém, a explosão da arte circense e a necessidade de sobreviver desta arte, uma vez que havia optado por ela em minha vida, proporcionava-me ministrar muitos cursos rápidos. Cursos que não tinham tempo para o namoro, o noivado e o casamento.
Grande parte de meus alunos, assim como os alunos de muitos outros, eram apenas “ficantes”. “Ficavam” no circo, usufruíam de sua beleza e de sua generosidade, mas não tinham a mesma ligação afetiva que impulsionava a fazer o melhor, sempre.
Um dia decidi não ensinar mais.
Não queria mais colaborar com o que eu achava errado.
E assim foi por muito tempo.
Mas chega um dia em que precisamos esvaziar o baú do nosso tesouro, para que possamos seguir em busca de novidades.
É muito triste carregar um baú lotado de ouro, encontrar quem dele necessite e não saber dividir. Ficamos estagnados, não temos como prosseguir. Pesa demais!
Então voltei a transmitir, só que de maneira diferente. Assim se deu a ultima oficina que ministrei na Oficina Cultural Amacio Mazzaropi.
Título: O Circo na cena contemporânea.
Meu objetivo era provocar a reflexão. Eu não queria mais transmitir apenas a técnica. Queria transmitir o amor, a ética e o respeito.
Queria que conhecessem as histórias fantásticas, que desejassem defender a arte do circo pela vida afora. E assim foi.
Nesse trabalho, que teve a duração de dois meses e meio, me preocupei menos com a quantidade e mais com a qualidade.
Tivemos longos papos a partir dos textos do site Circonteúdo e das mensagens em discussão no grupo Circomunicando. Muito foi pesquisado e assim, melhor compreendido. Cada cambalhota realizada teve um valor diferente, assim como cada passo sobre a perna de pau e cada hematoma conquistado no trapézio.
Tenho certeza que a partir daqui, haverá uma reformulação na forma de transmissão dos saberes circenses, e entre aqueles que, tive a oportunidade de encontrar neste curso, vislumbro competentes e promissores representantes da arte do circo, no futuro.
Sou grata a todos que me proporcionaram este tratamento.
Curei as minhas feridas!

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