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Astley 85/2004

Meu nome é Isiely Ayres, nasci circense e é com muita alegria que venho falar aqui ao Pindorama Circus um pouco da experiência que vivi dentro do circo mambembe. Sem levantar nem tentar responder questões, quero relatar algo sobre o processo de aprendizado pelo qual passei dentro do circo, nossos repertórios, nossos relacionamentos com a sociedade por onde passamos.

O circo da minha família chama-se Circo Astley, uma singela homenagem que meu pai, Ney Astley – o palhaço Buzina –, fez a John Philip Astley. Esse circo, já tem trinta anos e viaja por pequenas cidades no interior de São Paulo. A família do meu pai, os Ayres, tem pouco mais de cem anos de tradição em circo, e essa história começou quando minha bisavó Celestina “fugiu” com o circo aos 13 anos, em 1903. Eu sou uma mambembe “vira-lata” por que minha mãe, Sueli Sereno, não era circense até encontrar meu pai…

Comecei a trabalhar oficialmente aos seis anos de idade, fazia nessa época duble rola com meu pai e contorcionismo. Em meados da década de 1980, éramos sete crianças no fundo do circo: três filhos do saudoso palhaço Jurubéba (capa do livro Palhaços, de Mário Bolognesi) que ficou muitos anos na companhia do meu pai, os demais eram eu e meus irmãos. Ensaiávamos toda manhã com exceção de domingo. Os números de picadeiro ficavam por conta do meu pai, com retoques de Miriam (madrinha, tia e amada) no contorcionismo. Já o teatro ficava por conta do meu tio Abílio Jr. – o palhaço Faísca – e minha avó Aparecida Ayres.

Ah… Esqueci de dizer! Venho de um circo que apresentava teatro na segunda parte do espetáculo.

Continuando a falar sobre os números de picadeiro; aprendíamos de tudo um pouquinho até que a tendência a fazer melhor um determinado número aparecesse. Eu, por exemplo, tive maior facilidade com o contorcionismo e os aéreos; meu irmão a princípio saiu-se trapezista, mais tarde revelou-se malabarista e um grande palhaço “Jacaré” (Astley), e assim foi.

Quando cheguei aproximadamente aos treze anos, já era autodidata e recebia às vezes retoques de uma pessoa ou outra que aparecia com algo de ‘novo’. Foi o caso, por exemplo, de quando Madrinha Miriam se casou com meu tio Mário de Almeida F. – Chibiu – e foi viver nos circos maiores (Garcia, Spacial, Circo Popular do Brasil Marcos Frota). Ele fazia parte de uma trupe de báscula – aquele número de salto em gangorras – a Trupe Santiago, que tem em seu currículo apresentações no México e Portugal (Festival Internacional de Circo Atlas). Miriam, então, sempre me dava dicas de exercícios de aquecimento e alongamentos que aprendia como dançarina nos bailados, e trazia idéias de figurinos e maquiagens.

A companhia do Circo Astley sempre foi pequenina, nunca mais que quinze pessoas, a maioria parentes; e vez por outra esticava ou encolhia. Nossas temporadas eram de no mínimo 20 dias e apresentávamos um espetáculo diferente por noite.

Além de seus mais ou menos doze números de picadeiro – malabares, chicotes, pratos bailarinos, cães adestrados, entre outros –, grande repertório de reprises e entradas de palhaço (picadeiro), dramas e comédias, o circo contava também com shows que vinham de fora, o que fazia com que a programação variasse muito de uma temporada para outra.

Entre os shows de fora se destacavam os de duplas sertanejas, que na década de 1980 ainda se apresentavam nos circos, levando além da música também teatro como atração, por exemplo, o Duo Glacial com Lavrador não é covarde; Cezar e Paulinho com Deus da a farinha o diabo carrega o saco; Abel e Caim com Santa Luzia, entre outros.

Aqui na minha caixinha de memória ainda recordo uma ultima visita de Choróró e Noely, em 1988, na cidade de Ariranha (SP), quando no Astley estiveram para gravar, como lembrança, a peça que ela apresentava em circos quando jovem. Lembro também de um show dos ‘novatos’ João Paulo e Daniel talvez no mesmo ano, na cidade de Palmares Paulista, com grande equipamento de som e luz que a energia elétrica do circo não ‘guentô’. Depois em 1998, estiveram lá Gilberto e Gilmar para gravar “Vida de Artista” documentando, para TV brasileira, como era seu trabalho em circos. Lembro também de Cezar e Paulinho que vira e mexe passavam para dar um ‘oi’ quando faziam uma festa de peão na região. De vez em quando ainda trabalhavam conosco Lourenço e Lourival, Canário e Passarinho e Abel e Caim.

Além das duplas tínhamos também uma seria de outras atrações entre elas shows de cantoras e dançarinas – Talita Gray, Saron Rios, Susi Meire; shows de luta livre – Gigantes do ringue; imitações de atrações que explodem na TV, etc.

Isto tudo fora um costume que se tem no circo mambembe de levar espetáculos com a participação da comunidade, que ia desde shows de calouros até gincanas culturais repletas de quadros artísticas.

Falando mais sobre o teatro dentro do circo, levávamos basicamente dois tipos de peças: os de tradição oral – chanchadas, ou comédia do palhaço cara vermelha; e as que vinham do texto, como dramas e ‘altas comédias’. O processo de aprendizagem da primeira é bastante interessante por que a criança aprende assistindo anos seguidos. Quando chega o momento dela entrar no elenco de uma determinada comédia, basta que o palhaço dê uns retoques. Nesses casos o artista que representa o palhaço é também uma espécie de diretor de teatro. Assim, esse gênero de comédia ia sendo transmitido de geração em geração dentro dos circos, minha família ainda apresenta um repertório de umas dezoito chanchadas.

Já o repertório de peças que partiam dos textos é um caso sério, pois tenho calafrios ao pensar nas montanhas de acervos que muitos circenses queimaram ou jogaram fora. Eu retive um pequeno acervo, que chegou a mim em manuscritos por que era um habito dos circenses antigos fazer cópias á mão das peças e, em alguns casos, não se fazia questão nem de preservar o nome do autor.

Lástimas a parte, os dramas eram levados esporadicamente, quando a companhia do Astley era reforçada por outras. Assim se estudava a peça, e mais ou menos depois de uma semana de ensaios, ela era ‘levada’.

Na minha infância trabalhei em peças de José Fortuna – Voz de criança e Menino pobre –, em ambas fazia papel de moleque. Além dessas levávamos também: O Ébrio de Gilda de Abreu, Pai João, Coração Materno, Ah! se o Anacléto soubesse, entre outras.

É difícil falar resumidamente sobre tudo isso. Nesses vais da vida, trabalhei com muitos artistas e muitos palhaços entre eles Piquito, grande artista circense que me encanta pelo amor e respeito que demonstra ter pelo seu trabalho, ou o nosso.

No cotidiano, meu pai e meu tio eram além de artistas, empresários, secretários e ‘peludinhos’ – brinco, pois assim são chamados os que montam e desmontam circos, no Astley esse trabalho era de todos os homens a começar pelo dono. Já as mulheres, como numa tribo, nas mudanças cuidam dos trailers, nas temporadas cozinham e preparam as vendas e para mim, de vez em quando, tinha um trabalho de “oficce girl”.

Como secretários eles faziam as praças, solicitavam água e energia elétrica, tudo devidamente pago com exceção do terreno, que de vez em quando é permutado com ingressos. O circo também recebe alguns patrocínios do comércio local em forma de acordos pessoais, não burocráticos.

Quanto à escola sou de uma geração que pode estudar tranqüilamente itinerando até o fim do colégio, isso por conta de uma lei federal. Na minha família era hábito mandar os filhos para escola e ensinar também a atividade artística. Depois, quando crescemos, cada um escolheu o que quisessem fazer, eu quis continuar mambembe, me profissionalizei burocraticamente como atriz no ano passado (em 2006).

Éramos transferidos a cada temporada, na última vez que fiz as contas eu tinha passado por umas oitenta escolas, o que é bem pouco se compararmos com meus amigos de circo grande que fazem temporadas bem menores!

Meu pai tem um itinerário que permite que o circo trabalhe em três micros regiões no interior de São Paulo, sem repetir uma praça a cada 4 anos, muitas vezes o indicador da próxima cidade é a safra.

Os artistas de circo gostam de fazer amizades nos locais onde passam, tivemos muitos amigos, alguns desses nos faziam visitas temporadas seguidas quando o circo saia de suas cidades, às vezes um deles tinha alguma habilidade artística e a gente já botava para trabalhar; alguns grupos passavam as férias escolares toda conosco.

De vez em quando recebíamos visitas de repórteres e pesquisadores que vinham para passar um pouco do que viam para as páginas da “história oficial”. Mas, eles viam pouco, eu também, apesar de ter falado tanto, ainda falei bem pouco.

Talvez fale minha nostalgia se ao tentar resumir repito a eterna frase: “O mundo do circo é mágico!”.

Circo Astley Padre Nóbrega, dezembro de 1985 foi quando estrelei meu primeiro número solo, ganhei uma bicicleta de presente de natal por conta disso.

Rubiacea novembro de 2004 foi quando deixei o circo para me tornar uma mambembe ‘sedentária’, como nós artistas já éramos antes das lonas existirem. Eclética por natureza e um tanto inquieta, senti necessidade de me afastar da minha família. Talvez para me auto afirmar quanto profissional na área artística (coisa do meu indominável ego). A parte legal é que eu estou dando conta, graças à eterna universidade colorida que me formou… E o circo, o circo está por aí – Hoje tem espetáculo sim senhor!!!

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