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Arrelia – seu livro, o circo e suas viagens

Waldemar Seyssel, o Palhaço Arrelia, escreveu e publicou um livro, em 1977, contando suas memórias. O livro tem o título de Arrelia e o Circo (Ed. Melhoramentos), mas poderia ser intitulado “Arrelia, o Circo e as viagens de Waldemar Seyssel”. Metade do texto narra as tantas viagens turísticas que ele realizou: Europa, EUA, México, Argentina e por aí afora.

No que diz respeito à profissão circense, apesar do tom um pouco “meloso” com que trata a maioria das situações, espremendo um pouco é possível apreendermos muitos elementos da realidade de sua geração.

Esse livro chegou até mim, de forma curiosa. Estava passando em frente ao Sebo Bambu, de Ubatuba [SP], e vi sua proprietária arrumando livros que adquirira. Ela me chamou para mostrar uma edição que julgava ser de meu interesse, contendo algumas peças infantis. Enquanto me apresentava esse material, bati o olho numa capa, com a foto do famoso Arrelia. Perguntei sobre esse volume e ela me disse que ainda não estava devidamente preparado para venda. Voltei no final da tarde para buscá-lo. É claro que a leitura começou naquela tarde.

Com relação aos fatos históricos, vividos pelo autor, ao longo de sua carreira, o livro é bem organizado e descreve momentos como o transporte dos circos da década de 1910 – por trens ou carroças, seu início de carreira como domador, o nascimento do Palhaço Arrelia, as venturas e desventuras da vida sob a lona.

Muitas curiosidades são apresentadas e, para quem se interessa por garimpar dados e fatos que, como num quebra-cabeça, compõe um panorama da história circense no Brasil na primeira metade do século 20, o livro mantém o leitor grudado em suas páginas.

O texto mostra um aspecto bastante significativo da prática circense: a necessidade de atenção constante às situações adversas que os profissionais enfrentavam nas tantas cidades por onde passavam, como a concorrência com o cinema, a animosidade dos rapazes que viam nos homens de circo, concorrência direta, frente às moças locais, as muitas chuvas, a importância de criar um bom círculo de amizade em cada localidade, a flexibilização do espaço de trabalho que chegou a ser transformado em campo de bocha, para “salvar a praça”.

Claro que gafes e coisas risíveis ganham espaço na narrativa. A exemplo disso, as clássicas encenações da “Paixão de Cristo” quando havia comprometedoras trocas de falas entre os atores, roubo do pão da Santa Ceia (em cena) e interferências diretas do público.

A denominação dada por ele aos palhaços de picadeiro é bem interessante: “É preciso que se explique que, em geral, se dá o nome de palhaço a todos os artistas de circo que pintam o rosto. Contudo, para nós, profissionais circenses, o palhaço é aquele que pinta todo o rosto com tinta branca, usa vestimenta de lantejoulas e trás na cabeça um chapeuzinho em forma de cone. É ele quem está sempre ensinando ou pregando peças ao outro, que é seu companheiro; este nós chamamos de cômico de dupla.”

Em dado momento, Waldemar Seyssel conta algo que, hoje, nos chama a atenção mas que, em sua época, era normal: as comidas e guloseimas vendidas na porta do circo, não eram produzidas pelos artistas mas por ambulantes da própria cidade. O que nos faz pensar: em que momento ou por que razão, os artistas tomaram para si essa prática e, obviamente, seus rendimentos? Outra coisa curiosa era que, no interior do estado de São Paulo, havia uma regra comum às cidades que recebiam o Circo: a imposição de uma separação entre o público masculino e o feminino (isso era feito com uma corda que ia da entrada da lona, até o picadeiro). Por quê? Detalhes assim, pescados nas entrelinhas do texto, deleitam os pesquisadores do tema.

O autor ainda revela sua prática esporádica de ir fazer rir, “em domicílio”, nas vezes em que levou seu Palhaço a crianças que não podiam sair da cama ou do hospital, como uma espécie de avô embrionário do que conhecemos tão bem nos dias atuais.

E, para quem só o conhece como palhaço, uma surpresa: Waldemar foi, também, um grande empreendedor. Num período em que não se pensava nos espetáculos circenses de enormes proporções e fora das lonas, ele criou e realizou apresentações de dimensões gigantescas e com efeitos especiais (simples, porém eficientes) impactantes. Em 1954, lotou o Estádio do Pacaembu (SP), e apresentou um espetáculo com mais de 300 artistas (cem deles, palhaços). O “Gran finale” deu ao público a ilusão de um menino sendo levado aos céus, por centenas de balões de gás. Isso, sob a luz do sol! Em outra ocasião, organizou um desfile dinâmico de circenses, por avenidas e ruas de São Paulo, com duração de mais de quatro horas. Jamantas com globos da morte, caminhões com malabaristas, feras enjauladas e bailados, bicicletas com acrobatas, palhaços a pé, brincando com as pessoas – um espetáculo móvel, que passava em frente do espectador.

Poder ter contato com esses e outros detalhes faz de “Arrelia e o Circo” é um registro valioso para a história de nossa cultura.

Heyttor Barsalini – 05 de dezembro de 2010.

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